quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Rio de Sangue | 6

Encontrei Miúda ainda muito nova. Fui me acostumando a me movimentar dentro das camadas de saias que vestia quando foi amadurecendo mulher. Miúda e o povo daqui não diziam que eram pretos. Pretos não eram bem vistos, tinham que deixar a terra. Então dizia que era índia. Os outros diziam que eram índios. Índio não deixava a terra. Índio era tolerado, ninguém gostava, mas as leis protegiam, era o que pensavam. Os outros torciam o bico, porque viam que eram pretos. Mas o povo começava a contar que foi pego a dente de cachorro. Geralmente uma mulher era pega a dente de cachorro, então ninguém poderia questionar que não era uma índia legítima ou misturada com um preto. Miúda, atenta, começou a contar que havia sido pega a dente de cachorro como sua mãe. Se contava, pronto, todos acreditavam. Talvez por isso tenha sobrevivido à caminhada.
Miúda era peregrina. Antes de repousar em Água Negra, andou de terra em terra. Andou tanto que quando contava riam, achando que ou era mentira ou a velha caducava. Ela levantava a barra da saia para interromper uma conversa, sacudindo os muitos panos e levantando poeira da terra. Seguia para a beira do rio. Miúda era uma mulher-peixe, pescava, nadava, dormia de madrugada na beira d’água. Imitava o som dos peixes, mas também sabia imitar o canto de pássaros. Seus olhos acordavam alguns dias feitos sangue-de-boi e pareciam querer saltar e voar por entre as coisas. O sangue-de-boi brincava com seu reflexo no espelho d’água dos rios e das lagoas. Miúda não tinha tempo, nem gosto, nem vontade de se mirar no rio, que era uma veia aberta do seu corpo no meio da mata. Chorava dia e noite, porque haviam levado seus filhos para longe. Seus compadres da cidade viram a fome e a necessidade que se abatia durante a seca na casa de Miúda. Disseram que levando os meninos iriam aliviar o sofrimento da mulher sozinha. Disseram que os meninos iriam estudar na cidade, iriam aprender uma profissão, poderiam ajudar a mãe depois. A mulher-peixe resistiu. Varou dia e noite na beira do rio para pescar. Acendia fogueira para se aquecer e iluminar a escuridão, enquanto esperava. Mas a mineração trouxe muita areia para o leito e afastou os peixes maiores. Pescava piaba, que se juntava na beira d’água para comer a pele grossa, quase uma casca de árvore, dos dedos dos seus pés. Mas eram peixes tão pequenos que não davam nem gosto ao angu de farinha. Botou roça, mulher sozinha, e colheu muita coisa. Mas na cheia dos rios ou na seca não havia remédio. Com a lavoura perdida ou levada pelos donos da terra, restava enganar a fome. Veio um e levou um menino. Outro levou outro menino. Um terceiro levou dois de uma vez. Miúda ficou sozinha. A noite, na solidão, foi se tornando mais longa, e antes de o sol surgir, saía pela estrada, acompanhada dos sons dos insetos, para chegar à cidade e pedir para que os filhos voltassem. Seus compadres diziam que era melhor para os meninos estudarem na escola da cidade, que era melhor viverem por ali, tinha comida, não faltava. E Miúda era a mulher-peixe que voltava desolada para casa. Se aninhava na beira do rio, sem temer cobra ou caititu. Pescava as piabas, e quando chovia nas cabeceiras levava peixe grande para a mesa. As mãos da mulher-peixe eram encantadas, enfeitiçavam os peixes. Desciam lentas na água, sem provocar agitação. Quem via Miúda pescar percebia sua esperteza. Os peixes se rendiam em suas mãos, sem resistir.
Santa Rita Pescadeira vagava desacompanhada vendo a história do povo que também vagava de um lugar para outro procurando morada. Desde muito. Viu a guerra do garimpo e depois a guerra pela terra. Viu muita gente morrendo de maldade. Santa Rita Pescadeira montou o corpo de Miúda para dar um sentido às suas forças, que se esvaíam sem os filhos. As saias de Miúda giravam na casa do curador. Os braços de Miúda se agitavam como a correnteza do rio da alma. Ela lançava uma rede para apanhar as desgraças das vidas dos presentes e levar para o fundo das águas. Nessas horas, éramos uma só. Sentia o conforto de estar abrigada num corpo de mulher forte. Também era mulher-peixe. Era uma mulher-peixe dentro de outra mulher-peixe. Seus pés se movimentavam como nadadeiras e a raposa uivava na noite em que dançava. O povo achincalhava, sem se lembrar da encantada. Sem recordar que fui o acalanto das noites de quem vagava fugindo da ruindade. Mas dançava, lançava a rede e os braços corriam soltos no ar, como o rio bravo das cheias. Minhas forças alcançavam os que necessitavam. O pai do pai do seu pai acendeu uma vela para que curasse a febre do filho do seu senhor, numa noite de lua minguante. A mãe da mãe de sua mãe cantou uma cantiga para Santa Rita Pescadeira, em dias de fuga e desespero. Me alegro e me entristeço nessa dança antiga.
Já não danço porque não recordam Santa Rita Pescadeira, porque o curador dessa terra morreu, levaram suas forças e o tempo ruiu sua casa. Pairo como o ar e desço como a chuva na terra. Desço lavando o sangue que derramaram sem piedade. O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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