Encontrei Miúda ainda muito nova. Fui me
acostumando a me movimentar dentro das camadas de saias que vestia
quando foi amadurecendo mulher. Miúda e o povo daqui não diziam que
eram pretos. Pretos não eram bem vistos, tinham que deixar a terra.
Então dizia que era índia. Os outros diziam que eram índios. Índio
não deixava a terra. Índio era tolerado, ninguém gostava, mas as
leis protegiam, era o que pensavam. Os outros torciam o bico, porque
viam que eram pretos. Mas o povo começava a contar que foi pego a
dente de cachorro. Geralmente uma mulher era pega a dente de
cachorro, então ninguém poderia questionar que não era uma índia
legítima ou misturada com um preto. Miúda, atenta, começou a
contar que havia sido pega a dente de cachorro como sua mãe. Se
contava, pronto, todos acreditavam. Talvez por isso tenha sobrevivido
à caminhada.
Miúda era peregrina. Antes de repousar
em Água Negra, andou de terra em terra. Andou tanto que quando
contava riam, achando que ou era mentira ou a velha caducava. Ela
levantava a barra da saia para interromper uma conversa, sacudindo os
muitos panos e levantando poeira da terra. Seguia para a beira do
rio. Miúda era uma mulher-peixe, pescava, nadava, dormia de
madrugada na beira d’água. Imitava o som dos peixes, mas também
sabia imitar o canto de pássaros. Seus olhos acordavam alguns dias
feitos sangue-de-boi e pareciam querer saltar e voar por entre as
coisas. O sangue-de-boi brincava com seu reflexo no espelho d’água
dos rios e das lagoas. Miúda não tinha tempo, nem gosto, nem
vontade de se mirar no rio, que era uma veia aberta do seu corpo no
meio da mata. Chorava dia e noite, porque haviam levado seus filhos
para longe. Seus compadres da cidade viram a fome e a necessidade que
se abatia durante a seca na casa de Miúda. Disseram que levando os
meninos iriam aliviar o sofrimento da mulher sozinha. Disseram que os
meninos iriam estudar na cidade, iriam aprender uma profissão,
poderiam ajudar a mãe depois. A mulher-peixe resistiu. Varou dia e
noite na beira do rio para pescar. Acendia fogueira para se aquecer e
iluminar a escuridão, enquanto esperava. Mas a mineração trouxe
muita areia para o leito e afastou os peixes maiores. Pescava piaba,
que se juntava na beira d’água para comer a pele grossa, quase uma
casca de árvore, dos dedos dos seus pés. Mas eram peixes tão
pequenos que não davam nem gosto ao angu de farinha. Botou roça,
mulher sozinha, e colheu muita coisa. Mas na cheia dos rios ou na
seca não havia remédio. Com a lavoura perdida ou levada pelos donos
da terra, restava enganar a fome. Veio um e levou um menino. Outro
levou outro menino. Um terceiro levou dois de uma vez. Miúda ficou
sozinha. A noite, na solidão, foi se tornando mais longa, e antes de
o sol surgir, saía pela estrada, acompanhada dos sons dos insetos,
para chegar à cidade e pedir para que os filhos voltassem. Seus
compadres diziam que era melhor para os meninos estudarem na escola
da cidade, que era melhor viverem por ali, tinha comida, não
faltava. E Miúda era a mulher-peixe que voltava desolada para casa.
Se aninhava na beira do rio, sem temer cobra ou caititu. Pescava as
piabas, e quando chovia nas cabeceiras levava peixe grande para a
mesa. As mãos da mulher-peixe eram encantadas, enfeitiçavam os
peixes. Desciam lentas na água, sem provocar agitação. Quem via
Miúda pescar percebia sua esperteza. Os peixes se rendiam em suas
mãos, sem resistir.
Santa Rita Pescadeira vagava
desacompanhada vendo a história do povo que também vagava de um
lugar para outro procurando morada. Desde muito. Viu a guerra do
garimpo e depois a guerra pela terra. Viu muita gente morrendo de
maldade. Santa Rita Pescadeira montou o corpo de Miúda para dar um
sentido às suas forças, que se esvaíam sem os filhos. As saias de
Miúda giravam na casa do curador. Os braços de Miúda se agitavam
como a correnteza do rio da alma. Ela lançava uma rede para apanhar
as desgraças das vidas dos presentes e levar para o fundo das águas.
Nessas horas, éramos uma só. Sentia o conforto de estar abrigada
num corpo de mulher forte. Também era mulher-peixe. Era uma
mulher-peixe dentro de outra mulher-peixe. Seus pés se movimentavam
como nadadeiras e a raposa uivava na noite em que dançava. O povo
achincalhava, sem se lembrar da encantada. Sem recordar que fui o
acalanto das noites de quem vagava fugindo da ruindade. Mas dançava,
lançava a rede e os braços corriam soltos no ar, como o rio bravo
das cheias. Minhas forças alcançavam os que necessitavam. O pai do
pai do seu pai acendeu uma vela para que curasse a febre do filho do
seu senhor, numa noite de lua minguante. A mãe da mãe de sua mãe
cantou uma cantiga para Santa Rita Pescadeira, em dias de fuga e
desespero. Me alegro e me entristeço nessa dança antiga.
Já não danço porque não recordam
Santa Rita Pescadeira, porque o curador dessa terra morreu, levaram
suas forças e o tempo ruiu sua casa. Pairo como o ar e desço como a
chuva na terra. Desço lavando o sangue que derramaram sem piedade. O
sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro.
Depois chega galopando, como se andasse a cavalo.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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