quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Dos bolsos que na jaqueta havia

Devo fazer ainda outra menção à jaqueta que vestia.
E que se faça saber, à guisa de introdução ao que se segue, que, para um marinheiro comum, viver a bordo de um navio de guerra é como viver num mercado; onde você se veste na soleira da porta e dorme no porão. Privacidade, não há; nem sequer um momento de reclusão. Estar por algum instante sozinho é quase uma impossibilidade física. Come-se numa enorme table d’hôte; dorme-se num espaço coletivo, e a toalete se faz onde e quando é possível. Não dá para pedir costeleta de carneiro e uma jarra de clarete; tampouco escolher um quarto para o pernoite; ou deixar dobradas as calças sobre o encosto da cadeira; nem tocar a sineta numa manhã chuvosa para pedir o café da manhã na cama. É como a vida numa enorme fábrica. O sino toca para o almoço e, com ou sem fome, é preciso comer.
As roupas ficam comprimidas num saco grande de lona, geralmente pintado de preto, que você pode tirar da “prateleira” uma vez por dia, sob a penumbra da coberta, em meio à enorme confusão de quinhentos outros sacos e quinhentos outros marinheiros mergulhando dentro deles. Para evitar tamanho inconveniente, muitos marinheiros dividem seus pertences entre macas e sacos; guardando alguns suéteres e calças na primeira; de modo que possam se trocar à noite, quando se faz silêncio nas macas. Os ganhos nessa operação, porém, são mínimos.
Não há outro lugar, num navio de guerra, para armazenar o que quer que seja, além do saco ou da maca. Se você deixar qualquer coisa cair e se virar por um instante, as chances de encontrá-la a seguir são de dez para uma.
Ora, ao preparar os planos preliminares e organizar as fundações daquela memorável jaqueta minha, pensei em todos esses inconvenientes e decidi enfrentá-los. A ideia era que não apenas minha jaqueta me mantivesse aquecido, mas que também fosse projetada de tal forma que guardasse uma ou duas camisas, um par de calças e miudezas diversas — utensílios de costura, livros, bolachas e coisas que tais. Com esse intento, a provi de grande variedade de bolsos, à guisa de despensas, armário de roupa e guarda-copos.
Os principais compartimentos, em número de dois, localizavam-se nas fraldas da jaqueta, com ampla e hospitaleira abertura interna; outros dois, de menor capacidade, foram projetados em ambos os lados do peito, com abas retráteis que os separavam, de modo que, em caso de emergência, havendo necessidade de acomodar objetos maiores, pudessem se tornar um único bolso. Havia ainda muitos outros recessos discretos por trás do arrás; de modo tal que minha jaqueta, como um velho castelo, mostrava-se repleta de escadas sinuosas e alcovas misteriosas, criptas e gabinetes; e, como uma escrivaninha pronta a confidencialidades, cheia de pequenos e inesperados nichos protegidos e compartimentos secretos destinados a objetos de valor.
Além desses, eram quatro e espaçosos os bolsos externos; dois deles para esconder livros, quando subitamente desperto de meus estudos para atender à gávea; e outros dois para enfiar as mãos em caráter permanente durante as frias vigílias noturnas. Esse último expediente foi considerado inútil por um de meus companheiros de posto, que me mostrou um projeto para luvas marítimas que julgava muito melhor que o meu.
É preciso que se tenha em mente que os marinheiros, mesmo sob o mais horrendo dos climas, cobrem as mãos apenas quando estão fora de serviço; e jamais usam luvas nas gáveas, uma vez que ali eles literalmente têm as vidas em suas próprias mãos e nada querem entre estas e o cânhamo dos cabos ao qual se agarram. Portanto, é desejável que, a despeito do que lhes cubra as mãos, tal material possa ser posto e tirado num piscar de olhos. Sim, é desejável que seja de tal natureza que, se apressado numa noite escura — digamos, indo ao leme —, seja possível enfiá-lo sem quaisquer impedimentos; e não como um par de luvas de pelica especificamente costuradas para as mãos direita e esquerda, sem jamais vestir a mão contrária à que serve.
O projeto de meu companheiro de gávea — ele precisava tê-lo patenteado — era este: cada luva tinha dois polegares, um de cada lado; conveniência que dispensa comentários. Porém, se para marinheiros de primeira viagem, cujos dedos são todos polegares, a descrição de tais luvas cai muito bem, para Jaqueta Branca ela não era tão atraente. Pois, quando a mão estava dentro da luva, o polegar vazio às vezes pendia para dentro da palma da mão, causando confusão quanto ao paradeiro do polegar verdadeiro; ou, doutro modo, estando cuidadosamente preso à mão, sugeria continuamente a sensação sem sentido de que você estava o tempo todo segurando o polegar de outrem.
Não, disse a meu bom companheiro de gávea que desse o fora com seus quatro polegares, pois eu não tinha o que fazer com eles; para qualquer homem, dois polegares bastavam.
Por algum tempo depois de finalizar minha jaqueta e ocupar-lhe os espaços com toda a mobília e artigos de despensa, pensei que nada seria capaz de superá-la em conveniência. Agora eram poucas as vezes que eu tinha de visitar meu saco e ser acotovelado e empurrado pela multidão que tinha o guarda-roupa empilhado. Qualquer coisa que eu quisesse — roupas, agulhas, linha ou literatura —, era mais do que provável que a encontrasse em minha inestimável jaqueta. Digo-lhes com franqueza: chegava a abraçar e festejar minha jaqueta; até que, ai!, uma chuva prolongada levou-me a encará-la em sua crua realidade. Eu, e todos os meus bolsos e o que neles trazia, ficamos completamente ensopados. Minha edição de bolso de Shakespeare reduziu-se a uma omelete.
Servindo-me, entretanto, do belo dia que se seguiu, esvaziei-a de meus pertences e espalhei-os para que secassem. Porém, a despeito do sol que reluzia, foi um dia escuro para mim. Os canalhas do convés viram-me no ato de me desfazer de minha carga saturada; agora sabiam que a jaqueta branca era utilizada como armazém. A consequência disso foi que, com meus pertences devidamente secos e mais uma vez guardados em meus bolsos, na noite seguinte, quando fazia meu turno de vigília no convés, não na gávea (onde todos eram gente de bem), notei que havia um grupo de homens a seguir-me sorrateiramente aonde quer que fosse. Sem exceção, eram todos punguistas, empenhados em pilhar-me. Foi em vão que apalpei continuamente os bolsos como um velho cavalheiro nervoso em meio a uma multidão; naquela mesma noite me vi privado de vários objetos de valor. Assim, por fim, concretei meus cofres e despensas; e, exceto pelos dois bolsos que usava à guisa de luva, a partir dali a jaqueta branca foi deles destituída.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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