domingo, 12 de dezembro de 2021

Rio de Sangue | 5

Foi nesse dia que Bibiana resolveu reunir o povo de Água Negra para falar. Mesmo enredada em seu luto, precisava expor o que pensava. Não poderia deixar as coisas se desenrolarem do jeito que estavam ocorrendo porque, do contrário, em breve todos estariam em perigo. Mesmo que o vazio permanecesse em seu corpo, não deixaria a memória de Severo ser violada por uma mentira. Logo essa mentira seria muitas mentiras a acompanharem sua história, sem que pudesse se defender. E seus filhos? Como viveriam com a imagem vilipendiada do pai? Não permitiria que seu legado fosse despedaçado pela história que as autoridades queriam contar. Muitos deixaram seus afazeres, em respeito, para ouvi-la. Salu seguiu pelo caminho apoiada no braço de Domingas e do genro. Belonísia acompanhou os sobrinhos, mancando, depois de hesitar e escutar da irmã se deveria ou não permitir que ouvissem o que tinha a dizer. “Não há o que esconder”, disse Bibiana, num momento de rara firmeza nas últimas semanas. “Por mais que doa a verdade, é melhor saber por nós mesmos do que por outros. E, sabendo por mim, poderão defendê-lo com os mesmos argumentos.”
Belonísia se sentiu uma sombra de Bibiana durante aqueles dias. Havia se esquivado a vida toda daquele papel, desde que, de forma quase instintiva, a irmã passou a falar por ela. Desde que permitiu que Bibiana conhecesse seus sentimentos mais íntimos. Da mesma forma, se apossava do que se movimentava feroz no pensamento da irmã. Se sentia, mais que nunca, unida pelo que parecia ser um destino inevitável a se traçar nas trilhas de suas vidas. Passado tanto tempo, não era mais preciso nenhuma comunicação visível, seja pela troca de olhares ou pela leitura dos gestos. O ar, sentia, poderia vibrar de forma involuntária transmitindo o mal-estar físico e mental que a outra emanava. Poderia transmitir suas agitações e suas vontades. Esses dias foram cruciais para que percebesse o quanto estavam ajustadas em suas compreensões. Belonísia havia desenvolvido essa percepção expandida em relação às pessoas, mais ainda quando se referia à irmã, a sua voz no mundo onde se movimentava em silêncio. O mesmo silêncio da roça e da casa em que residiu por pouco tempo com Tobias foi o estado propício para desenvolver a fúria dos seus sentidos para se comunicar com seu entorno. A vida, naquele instante, apenas confirmava o que continuava oculto aos olhos alheios, encoberto, talvez num primeiro momento para a própria irmã, mas que consolidou de forma vigorosa e sem retorno o elo entre as duas.
Durante toda sua vida, Bibiana havia visto o pai organizando as empreitadas de trabalho ou conduzindo a assistência nas cerimônias de jarê. Nunca imaginou, entretanto, que aquela incumbência de falar ao povo da fazenda recairia sobre seus ombros. Até mesmo porque Severo era quem vinha falando aos moradores, organizando a resistência ao cerco que Salomão e seus empregados vinham instituindo, embora ela se inteirasse e participasse de forma ativa da movimentação. Agora se percebia exposta à violência do atentado, à mentira que tentavam difundir para desmoralizar de vez o povo da Água Negra. Sentia como se os tiros continuassem a atravessar os corpos de sua família, mesmo depois de terem levado o marido.
Antes que pudesse começar a falar diante dos vizinhos e parentes, Bibiana sentiu seu corpo tremer de desconforto, ao ver que Salomão a observava de longe, de cima de um cavalo, acompanhado do atual gerente. Logo depois ele apearia, colocando-se à sombra de um jatobá. Queria intimidá-la. Sua presença tinha a clara intenção de silenciar aquela reunião, ou, no mínimo, fazer com que se medissem bem as palavras antes de lançá-las para fora da boca. Argumentaria que era sua terra, e que não iria mais tolerar aquela desordem de gente se reunindo para propagar ideias como as que Severo espalhava, ideias que tinham a intenção de prejudicá-lo. “Nunca houve quilombola nessas terras”, podia ouvi-lo repetir, antes mesmo de se pronunciar. Mas não havia volta: Bibiana estava tomada pela revolta. Dirigiu seu olhar para os moradores que esperavam sua palavra, embora percebesse vez ou outra alguém olhar com indignação para a direção de Salomão.
Bibiana tremeu de forma visível quando pediu que silenciassem para que pudesse falar. Belonísia desviou o olhar, temendo ser tomada do mesmo medo que a irmã evolava. Mas sua segurança cresceu quando iniciou o discurso. Subitamente, o tremor deu lugar a uma voz forte, segura, que foi persuadindo os presentes.
Chegamos à fazenda há muitos anos, cada um aqui sabe como foi. Essa história já foi repetida muitas vezes. Mil vezes. Muitos de nós, a maioria, posso dizer, nasceu nesta terra. Nasceu aqui, nesta terra que não tinha nada, só o nosso trabalho. Isto tudo aqui só existe porque trabalhamos essa terra. Eu nasci aqui. Meus irmãos nasceram aqui. Crispina, Crispiniana e a família também. E os que não nasceram, já estão a maior parte de suas vidas em Água Negra. Os donos pisavam os pés nesta terra só para receberem o dinheiro das coisas que plantávamos nas roças. Todo mundo sabe das histórias de Seu Damião, Seu Saturnino e Zeca, meu pai. E sabe das histórias do jarê e de tudo o que vivemos aqui. Sabe melhor que qualquer forasteiro quantas secas já vimos se abaterem sobre a fazenda e quantas enchentes comeram nossas roças na beira do Utinga e do Santo Antônio.”
Pausou sua fala para respirar, recuperando o fôlego consumido com suas lembranças. Consumido pela responsabilidade de se apresentar para defender o que restava da dignidade de seu povo. Olhou para os filhos, atentos, ao lado de Belonísia, que conservava o corpo muito próximo das meninas, como um animal a defender suas crias. Nesse instante, foi tomada por recordações desordenadas que a levaram à imagem de Severo.
Todos sabem o que Severo fez por Água Negra. Chegou aqui muito pequeno, fomos morar fora para arranjar a vida, porque aqui as coisas foram ficando difíceis. Mas tinha gosto e respeito por vocês. Tinha consciência de nossa história. Sabia o que nosso povo tinha sofrido desde antes de Água Negra. Desde muito tempo. Desde os dez mil escravos que o Coronel Horácio de Matos usou para encontrar diamante e guerrear com seus inimigos. Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que sobrava era para cuidar de nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome. Os homens foram se esgotando, morrendo de exaustão, cheios de problemas de saúde quando ficaram velhos.”
As botas de Salomão pisavam a terra moendo torrões e o som ressoava nos breves silêncios entre uma fala e outra. Por algumas vezes, Crispina, Crispiniana, Isidoro e Saturnino olharam para trás. Alguns moradores se voltavam para observá-lo e segredavam entre si as impressões daquela presença. Maria Cabocla estava de pé olhando atenta para Bibiana, com a cabeça grisalha coberta por um lenço desbotado, ao lado de cinco dos seus dez filhos que ainda moravam na fazenda.
Mas não vamos desistir. Essa semente que Severo plantou por nossa liberdade e por nossos direitos não irá morrer. Foi um que se foi. Meu companheiro e pai de meus filhos. Mas somos muitos ainda nesta fazenda. Foi embora um fruto, mas a árvore ficou. E suas raízes são muito fundas para tentarem arrancar. A mentira de que ele cuidava de plantio de maconha não ficará de pé. Nós sabemos quem planta”, disse sem desviar o olhar do povo à sua frente. “Nós moramos na periferia da cidade, e lá os policiais usavam a mesma desculpa de drogas para entrar nas casas, matando o povo preto. Não precisa nem ser julgado nos tribunais, a polícia tem licença para matar e dizer que foi troca de tiro. Nós sabíamos que não era troca de tiros. Que era extermínio.”
Logo outras vozes, que nunca se manifestavam na presença de Salomão, foram se somando ao discurso de Bibiana. Sua imagem alquebrada pelo turbilhão de emoções a que havia sido lançada consternava, ao mesmo tempo que inflamava as falas dos parentes e vizinhos, ou dos que tinham sido seus alunos. Os olhos de Salomão demonstravam o receio. Ele observava a reunião com a cautela necessária. Era uma aglomeração considerável, havia muitas famílias, todos mobilizados pelo incidente. Qualquer gesto seu poderia ser entendido com suspeição. Poderia provocar uma turba, e naquele instante ele estava em desvantagem.
Querem desonrar Severo, porque desonrando seu nome enfraquecem nossa luta. Querem proteger os poderosos. Querem nos calar, nos retirar daqui a qualquer custo. Querem nos dobrar, mas não vergaremos. Querem que a gente levante carregando nossas coisas e deixe a fazenda. Para onde? Não interessa. Queimaram nosso galinheiro, soltaram animais para destruir nossas roças. Quiseram impedir a pesca com a desculpa de que era para proteger os rios. Como se não fosse a gente que cuidasse das coisas. Como se não fôssemos parte de tudo isso. Estivesse tudo isso nas mãos de garimpeiro ou fazendeiro, estaria destruído. Até proibir de enterrar nossos mortos na Viração tentaram. Mas não irão nos dobrar. Não deixaremos Água Negra.”
Irromperam aplausos e coro para reafirmar o que Bibiana havia dito. De forma surpreendente, Salomão permaneceu calado, embora impaciente, mexendo os pés de maneira que chamava a atenção. Quem lá estava sabia o quanto as coisas haviam piorado desde a venda da fazenda. Viviam acuados. Impulsionados pela mobilização iniciada por Severo, viam em sua morte um pretexto para se fazerem ouvir. Seria agora ou nunca mais.
Salomão sequer esperou as pessoas se dispersarem para se aproximar de Bibiana. Embora, aparentemente, quisesse desfazer o mal-estar pela morte de Severo, sua presença era incômoda. Nem suas palavras conseguiram sinalizar uma trégua. “Sinto muito pela morte de seu marido. Estava fora, mas os empregados avisaram”, iniciou a conversa de forma amena para prosseguir com o recado, “mas a senhora não pode acusar ninguém. O inquérito, pelo que fui informado, foi concluído. A polícia já deu a resposta. Tem gente séria lá”, parou em frente a Bibiana, tentando apoiar a mão em seu ombro. Ela, de imediato, deu um passo para trás. “O senhor não precisa dizer o que eu vou falar”, caminhou se afastando de Salomão, quando se voltou para trás olhando diretamente nos seus olhos, “Quem fez isso com Severo irá pagar. A justiça dos homens pode até falhar, mas da de Deus ninguém escapa”.
Belonísia encarou o fazendeiro enquanto os sobrinhos seguiam tentando alcançar a mãe. Seus olhos rutilavam um brilho vivo, encantado, e fez o homem sentir um arrepio aparente nos pelos dos braços que se eriçaram. Somente Inácio desacelerou os passos para aguardar a madrinha. Ela contornou a sombra de Salomão projetada no chão e escarrou sobre ela o veneno que guardava na boca.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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