Foi nesse dia que Bibiana resolveu reunir
o povo de Água Negra para falar. Mesmo enredada em seu luto,
precisava expor o que pensava. Não poderia deixar as coisas se
desenrolarem do jeito que estavam ocorrendo porque, do contrário, em
breve todos estariam em perigo. Mesmo que o vazio permanecesse em seu
corpo, não deixaria a memória de Severo ser violada por uma
mentira. Logo essa mentira seria muitas mentiras a acompanharem sua
história, sem que pudesse se defender. E seus filhos? Como viveriam
com a imagem vilipendiada do pai? Não permitiria que seu legado
fosse despedaçado pela história que as autoridades queriam contar.
Muitos deixaram seus afazeres, em respeito, para ouvi-la. Salu seguiu
pelo caminho apoiada no braço de Domingas e do genro. Belonísia
acompanhou os sobrinhos, mancando, depois de hesitar e escutar da
irmã se deveria ou não permitir que ouvissem o que tinha a dizer.
“Não há o que esconder”, disse Bibiana, num momento de rara
firmeza nas últimas semanas. “Por mais que doa a verdade, é
melhor saber por nós mesmos do que por outros. E, sabendo por mim,
poderão defendê-lo com os mesmos argumentos.”
Belonísia se sentiu uma sombra de
Bibiana durante aqueles dias. Havia se esquivado a vida toda daquele
papel, desde que, de forma quase instintiva, a irmã passou a falar
por ela. Desde que permitiu que Bibiana conhecesse seus sentimentos
mais íntimos. Da mesma forma, se apossava do que se movimentava
feroz no pensamento da irmã. Se sentia, mais que nunca, unida pelo
que parecia ser um destino inevitável a se traçar nas trilhas de
suas vidas. Passado tanto tempo, não era mais preciso nenhuma
comunicação visível, seja pela troca de olhares ou pela leitura
dos gestos. O ar, sentia, poderia vibrar de forma involuntária
transmitindo o mal-estar físico e mental que a outra emanava.
Poderia transmitir suas agitações e suas vontades. Esses dias foram
cruciais para que percebesse o quanto estavam ajustadas em suas
compreensões. Belonísia havia desenvolvido essa percepção
expandida em relação às pessoas, mais ainda quando se referia à
irmã, a sua voz no mundo onde se movimentava em silêncio. O mesmo
silêncio da roça e da casa em que residiu por pouco tempo com
Tobias foi o estado propício para desenvolver a fúria dos seus
sentidos para se comunicar com seu entorno. A vida, naquele instante,
apenas confirmava o que continuava oculto aos olhos alheios,
encoberto, talvez num primeiro momento para a própria irmã, mas que
consolidou de forma vigorosa e sem retorno o elo entre as duas.
Durante toda sua vida, Bibiana havia
visto o pai organizando as empreitadas de trabalho ou conduzindo a
assistência nas cerimônias de jarê. Nunca imaginou, entretanto,
que aquela incumbência de falar ao povo da fazenda recairia sobre
seus ombros. Até mesmo porque Severo era quem vinha falando aos
moradores, organizando a resistência ao cerco que Salomão e seus
empregados vinham instituindo, embora ela se inteirasse e
participasse de forma ativa da movimentação. Agora se percebia
exposta à violência do atentado, à mentira que tentavam difundir
para desmoralizar de vez o povo da Água Negra. Sentia como se os
tiros continuassem a atravessar os corpos de sua família, mesmo
depois de terem levado o marido.
Antes que pudesse começar a falar diante
dos vizinhos e parentes, Bibiana sentiu seu corpo tremer de
desconforto, ao ver que Salomão a observava de longe, de cima de um
cavalo, acompanhado do atual gerente. Logo depois ele apearia,
colocando-se à sombra de um jatobá. Queria intimidá-la. Sua
presença tinha a clara intenção de silenciar aquela reunião, ou,
no mínimo, fazer com que se medissem bem as palavras antes de
lançá-las para fora da boca. Argumentaria que era sua terra, e que
não iria mais tolerar aquela desordem de gente se reunindo para
propagar ideias como as que Severo espalhava, ideias que tinham a
intenção de prejudicá-lo. “Nunca houve quilombola nessas
terras”, podia ouvi-lo repetir, antes mesmo de se pronunciar. Mas
não havia volta: Bibiana estava tomada pela revolta. Dirigiu seu
olhar para os moradores que esperavam sua palavra, embora percebesse
vez ou outra alguém olhar com indignação para a direção de
Salomão.
Bibiana tremeu de forma visível quando
pediu que silenciassem para que pudesse falar. Belonísia desviou o
olhar, temendo ser tomada do mesmo medo que a irmã evolava. Mas sua
segurança cresceu quando iniciou o discurso. Subitamente, o tremor
deu lugar a uma voz forte, segura, que foi persuadindo os presentes.
“Chegamos à fazenda há muitos anos,
cada um aqui sabe como foi. Essa história já foi repetida muitas
vezes. Mil vezes. Muitos de nós, a maioria, posso dizer, nasceu
nesta terra. Nasceu aqui, nesta terra que não tinha nada, só o
nosso trabalho. Isto tudo aqui só existe porque trabalhamos essa
terra. Eu nasci aqui. Meus irmãos nasceram aqui. Crispina,
Crispiniana e a família também. E os que não nasceram, já estão
a maior parte de suas vidas em Água Negra. Os donos pisavam os pés
nesta terra só para receberem o dinheiro das coisas que plantávamos
nas roças. Todo mundo sabe das histórias de Seu Damião, Seu
Saturnino e Zeca, meu pai. E sabe das histórias do jarê e de tudo o
que vivemos aqui. Sabe melhor que qualquer forasteiro quantas secas
já vimos se abaterem sobre a fazenda e quantas enchentes comeram
nossas roças na beira do Utinga e do Santo Antônio.”
Pausou sua fala para respirar,
recuperando o fôlego consumido com suas lembranças. Consumido pela
responsabilidade de se apresentar para defender o que restava da
dignidade de seu povo. Olhou para os filhos, atentos, ao lado de
Belonísia, que conservava o corpo muito próximo das meninas, como
um animal a defender suas crias. Nesse instante, foi tomada por
recordações desordenadas que a levaram à imagem de Severo.
“Todos sabem o que Severo fez por Água
Negra. Chegou aqui muito pequeno, fomos morar fora para arranjar a
vida, porque aqui as coisas foram ficando difíceis. Mas tinha gosto
e respeito por vocês. Tinha consciência de nossa história. Sabia o
que nosso povo tinha sofrido desde antes de Água Negra. Desde muito
tempo. Desde os dez mil escravos que o Coronel Horácio de Matos usou
para encontrar diamante e guerrear com seus inimigos. Quando deram a
liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra
em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por
nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de
antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade? Não podíamos
construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que
queríamos. Levavam o que podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de
domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que sobrava era
para cuidar de nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem
na roça do senhor e mulher e filhos na roça de casa, nos quintais,
para não morrerem de fome. Os homens foram se esgotando, morrendo de
exaustão, cheios de problemas de saúde quando ficaram velhos.”
As botas de Salomão pisavam a terra
moendo torrões e o som ressoava nos breves silêncios entre uma fala
e outra. Por algumas vezes, Crispina, Crispiniana, Isidoro e
Saturnino olharam para trás. Alguns moradores se voltavam para
observá-lo e segredavam entre si as impressões daquela presença.
Maria Cabocla estava de pé olhando atenta para Bibiana, com a cabeça
grisalha coberta por um lenço desbotado, ao lado de cinco dos seus
dez filhos que ainda moravam na fazenda.
“Mas não vamos desistir. Essa semente
que Severo plantou por nossa liberdade e por nossos direitos não irá
morrer. Foi um que se foi. Meu companheiro e pai de meus filhos. Mas
somos muitos ainda nesta fazenda. Foi embora um fruto, mas a árvore
ficou. E suas raízes são muito fundas para tentarem arrancar. A
mentira de que ele cuidava de plantio de maconha não ficará de pé.
Nós sabemos quem planta”, disse sem desviar o olhar do povo à sua
frente. “Nós moramos na periferia da cidade, e lá os policiais
usavam a mesma desculpa de drogas para entrar nas casas, matando o
povo preto. Não precisa nem ser julgado nos tribunais, a polícia
tem licença para matar e dizer que foi troca de tiro. Nós sabíamos
que não era troca de tiros. Que era extermínio.”
Logo outras vozes, que nunca se
manifestavam na presença de Salomão, foram se somando ao discurso
de Bibiana. Sua imagem alquebrada pelo turbilhão de emoções a que
havia sido lançada consternava, ao mesmo tempo que inflamava as
falas dos parentes e vizinhos, ou dos que tinham sido seus alunos. Os
olhos de Salomão demonstravam o receio. Ele observava a reunião com
a cautela necessária. Era uma aglomeração considerável, havia
muitas famílias, todos mobilizados pelo incidente. Qualquer gesto
seu poderia ser entendido com suspeição. Poderia provocar uma
turba, e naquele instante ele estava em desvantagem.
“Querem desonrar Severo, porque
desonrando seu nome enfraquecem nossa luta. Querem proteger os
poderosos. Querem nos calar, nos retirar daqui a qualquer custo.
Querem nos dobrar, mas não vergaremos. Querem que a gente levante
carregando nossas coisas e deixe a fazenda. Para onde? Não
interessa. Queimaram nosso galinheiro, soltaram animais para destruir
nossas roças. Quiseram impedir a pesca com a desculpa de que era
para proteger os rios. Como se não fosse a gente que cuidasse das
coisas. Como se não fôssemos parte de tudo isso. Estivesse tudo
isso nas mãos de garimpeiro ou fazendeiro, estaria destruído. Até
proibir de enterrar nossos mortos na Viração tentaram. Mas não
irão nos dobrar. Não deixaremos Água Negra.”
Irromperam aplausos e coro para reafirmar
o que Bibiana havia dito. De forma surpreendente, Salomão permaneceu
calado, embora impaciente, mexendo os pés de maneira que chamava a
atenção. Quem lá estava sabia o quanto as coisas haviam piorado
desde a venda da fazenda. Viviam acuados. Impulsionados pela
mobilização iniciada por Severo, viam em sua morte um pretexto para
se fazerem ouvir. Seria agora ou nunca mais.
Salomão sequer esperou as pessoas se
dispersarem para se aproximar de Bibiana. Embora, aparentemente,
quisesse desfazer o mal-estar pela morte de Severo, sua presença era
incômoda. Nem suas palavras conseguiram sinalizar uma trégua.
“Sinto muito pela morte de seu marido. Estava fora, mas os
empregados avisaram”, iniciou a conversa de forma amena para
prosseguir com o recado, “mas a senhora não pode acusar ninguém.
O inquérito, pelo que fui informado, foi concluído. A polícia já
deu a resposta. Tem gente séria lá”, parou em frente a Bibiana,
tentando apoiar a mão em seu ombro. Ela, de imediato, deu um passo
para trás. “O senhor não precisa dizer o que eu vou falar”,
caminhou se afastando de Salomão, quando se voltou para trás
olhando diretamente nos seus olhos, “Quem fez isso com Severo irá
pagar. A justiça dos homens pode até falhar, mas da de Deus ninguém
escapa”.
Belonísia encarou o fazendeiro enquanto
os sobrinhos seguiam tentando alcançar a mãe. Seus olhos rutilavam
um brilho vivo, encantado, e fez o homem sentir um arrepio aparente
nos pelos dos braços que se eriçaram. Somente Inácio desacelerou
os passos para aguardar a madrinha. Ela contornou a sombra de Salomão
projetada no chão e escarrou sobre ela o veneno que guardava na
boca.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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