sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Rio de Sangue | 4

Alguém lembrou que ainda poderia haver justiça. Que por mais doloroso que fosse o desaparecimento de um líder, a solução para os problemas permanecia no horizonte a ser perseguida em sua homenagem. Não iriam ceder à violência do momento e agir de forma irresponsável para pôr em risco seus sonhos e perderem de vez a batalha. Uma voz se levantou para dizer que era preciso acalmar os ânimos, embora estivessem se sentindo em pedaços pelo que tinha acontecido. Outra exortou por temperança, para que não deixassem o ódio falar mais alto.
Aquela noite foi longa. Bibiana permaneceu acordada, primeiro com a luz da sala acesa. Depois deixou que a escuridão tomasse conta da casa quando todos foram dormir. Inácio cuidou das irmãs para que se acomodassem na cama. Ana perguntava sobre o pai. Onde ele estaria agora. Perguntavam se se chovesse ele ficaria molhado e com frio debaixo da terra. Se no sol do meio-dia não ficaria muito quente. Inácio não tinha muitas respostas para as preocupações que vinham dos medos da irmã. Tudo que sabia tinha origem nas crenças dos encantados das avós Salu e Hermelina. Vinha da fé de seus pais, não muito diferente da que as avós haviam lhe apresentado. Tudo que sabia tinha maior influência de sua avó materna, pelo convívio com o mundo dos encantados, por estar desde muito cedo ao lado de um curador. Por isso, Inácio contou qualquer coisa, sem sequer refletir se acreditava, até que ela dormisse vencida pelo cansaço. Nesse momento, retornou à sala e perguntou à mãe se não iria descansar. Ela disse que iria, sim, quando sentisse sono. Ele se aproximou e a abraçou, sentada na cadeira onde estava. Beijou o alto de sua cabeça. Bibiana sentiu as lágrimas de seu filho encontrarem as suas, quentes, minando há muito de seus olhos. Pediu que não ficasse triste porque cuidaria dela. Essas palavras demoliram o resto de domínio que Bibiana tentava ter. Inácio era um jovem pouco mais velho que o pai quando este deixou Água Negra.
Então o dia da partida renasceu em sua mente, enquanto abraçava o filho num choro que liberava as dores que haviam se acumulado desde o atentado a Severo. Ela acompanhou o corpo sem vida até o hospital, carregou a cabeça em seu colo, o cheiro de sangue que parecia ter penetrado suas entranhas, por mais que tivesse lavado o corpo e trocado de roupa. O arrombamento do portão da Viração onde estavam enterrados os antepassados dos moradores, e a decisão de não queimar a casa dos donos da fazenda. Em pouco mais de um dia, tudo havia mudado de forma tão abrupta que era impossível processar o que estava acontecendo. Quando o filho foi deitar, Bibiana permaneceu no escuro, na esperança de que algo se manifestasse para orientá-la sobre o que fazer. Amparou-se nas lembranças, nas dificuldades que passaram juntos quando partiram. Das tarefas que precisou fazer enquanto procuravam se firmar no mundo além da fazenda: ajudante de cozinha num restaurante de beira de estrada, diarista de serviços domésticos, cuidando de crianças. Durante esse tempo, nasceram seus filhos e cursou o magistério, realizando em parte os propósitos que a fizeram deixar a fazenda por um tempo. Nessa jornada percebeu que a vida além da Água Negra não era muito diferente, no que se referia à exploração. Mas havia Severo, e os sonhos, e tudo que construíam juntos. Havia dificuldades e desentendimentos, mas havia, antes de qualquer coisa, afetos que ela mesma não poderia definir. Afetos que envolviam suas histórias e todas as coisas que apreendiam, sobre si e sobre sua gente. Como nessa jornada passaram a amar seu lugar! Sentiram vontade de retornar, à medida que foram acumulando informações sobre o que era pertencer a uma comunidade de moradores, talvez invisíveis para todo o resto, no coração de uma fazenda.
Antes que o sono viesse, Bibiana se levantou da cadeira. A luz do sol entrava pelas frestas da porta e da janela. Abriu a porta, sentiu o sereno fresco da manhã tocar sua pele. O que seria de tudo, agora, sem Severo? O que seria dela com o vazio que tinha se apossado de seu corpo? Havia os filhos para encaminhar na vida. E, antes que pensasse nos dias por vir, chegaram as irmãs e a mãe. Salu foi para a cozinha preparar café. Belonísia e Domingas sentaram na sala ao seu lado. As três olharam por um tempo a terra além da porta, e o canto dos pássaros parecia ser o mesmo de toda uma vida. Parecia ser o mesmo de um passado tão perto e tão longe. O mesmo canto que as acompanhou na infância, enquanto seguiam o caminho da roça de madrugada, ao lado do pai, para espantar os chupins dos arrozais.
Mais tarde, a polícia chegou para fazer a perícia do local do crime. Embora Inácio e Domingas tivessem pedido insistentemente que Bibiana ficasse em casa, ela não cedeu e acompanhou tudo, respondendo às perguntas que faziam. Alternava momentos de completa apatia, quando as perguntas precisavam ser repetidas mais de uma vez para que compreendesse, com momentos de ansiedade e revolta, visíveis nos gestos do corpo e no timbre da voz. Se esforçava tentando lembrar cada fração de tempo, cada passo, cada pensamento, gestos, até o que estava escrito, palavra por palavra, no bilhete da chegada do pai que havia voltado para buscar quando Severo foi alvejado. Nada, mais nada sabia. Só que um carro havia partido em alta velocidade em direção à estrada, foi o que alguns moradores disseram. Os agentes foram até as casas das pessoas que supostamente haviam visto o veículo em fuga. Anotaram a cor do carro. Os vidros escuros, disseram, tinham sido um obstáculo para saber quantos e quem estava em seu interior. Perguntaram se notaram algo estranho nos dias que antecederam o crime e se Severo havia brigado com alguém. Quando os moradores responderam sobre os desentendimentos com o dono da fazenda, os policiais se deram por satisfeitos, não prosseguiram. Bibiana e algumas das pessoas presentes foram convidadas a prestar mais testemunhos na delegacia da cidade.
Pareceu, durante um breve período, que as coisas haviam mudado, talvez houvesse justiça para o que havia ocorrido. Iriam investigar a morte de um homem simples como investigariam a morte de um fazendeiro ou de qualquer homem poderoso da cidade. Mas, algumas semanas depois, surgiu a notícia de que o inquérito havia sido concluído. Que haviam descoberto um plantio de maconha numa área próxima aos marimbus. Que Severo havia sido morto numa disputa do tráfico de drogas na região.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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