Alguém lembrou que ainda poderia haver
justiça. Que por mais doloroso que fosse o desaparecimento de um
líder, a solução para os problemas permanecia no horizonte a ser
perseguida em sua homenagem. Não iriam ceder à violência do
momento e agir de forma irresponsável para pôr em risco seus sonhos
e perderem de vez a batalha. Uma voz se levantou para dizer que era
preciso acalmar os ânimos, embora estivessem se sentindo em pedaços
pelo que tinha acontecido. Outra exortou por temperança, para que
não deixassem o ódio falar mais alto.
Aquela noite foi longa. Bibiana
permaneceu acordada, primeiro com a luz da sala acesa. Depois deixou
que a escuridão tomasse conta da casa quando todos foram dormir.
Inácio cuidou das irmãs para que se acomodassem na cama. Ana
perguntava sobre o pai. Onde ele estaria agora. Perguntavam se se
chovesse ele ficaria molhado e com frio debaixo da terra. Se no sol
do meio-dia não ficaria muito quente. Inácio não tinha muitas
respostas para as preocupações que vinham dos medos da irmã. Tudo
que sabia tinha origem nas crenças dos encantados das avós Salu e
Hermelina. Vinha da fé de seus pais, não muito diferente da que as
avós haviam lhe apresentado. Tudo que sabia tinha maior influência
de sua avó materna, pelo convívio com o mundo dos encantados, por
estar desde muito cedo ao lado de um curador. Por isso, Inácio
contou qualquer coisa, sem sequer refletir se acreditava, até que
ela dormisse vencida pelo cansaço. Nesse momento, retornou à sala e
perguntou à mãe se não iria descansar. Ela disse que iria, sim,
quando sentisse sono. Ele se aproximou e a abraçou, sentada na
cadeira onde estava. Beijou o alto de sua cabeça. Bibiana sentiu as
lágrimas de seu filho encontrarem as suas, quentes, minando há
muito de seus olhos. Pediu que não ficasse triste porque cuidaria
dela. Essas palavras demoliram o resto de domínio que Bibiana
tentava ter. Inácio era um jovem pouco mais velho que o pai quando
este deixou Água Negra.
Então o dia da partida renasceu em sua
mente, enquanto abraçava o filho num choro que liberava as dores que
haviam se acumulado desde o atentado a Severo. Ela acompanhou o corpo
sem vida até o hospital, carregou a cabeça em seu colo, o cheiro de
sangue que parecia ter penetrado suas entranhas, por mais que tivesse
lavado o corpo e trocado de roupa. O arrombamento do portão da
Viração onde estavam enterrados os antepassados dos moradores, e a
decisão de não queimar a casa dos donos da fazenda. Em pouco mais
de um dia, tudo havia mudado de forma tão abrupta que era impossível
processar o que estava acontecendo. Quando o filho foi deitar,
Bibiana permaneceu no escuro, na esperança de que algo se
manifestasse para orientá-la sobre o que fazer. Amparou-se nas
lembranças, nas dificuldades que passaram juntos quando partiram.
Das tarefas que precisou fazer enquanto procuravam se firmar no mundo
além da fazenda: ajudante de cozinha num restaurante de beira de
estrada, diarista de serviços domésticos, cuidando de crianças.
Durante esse tempo, nasceram seus filhos e cursou o magistério,
realizando em parte os propósitos que a fizeram deixar a fazenda por
um tempo. Nessa jornada percebeu que a vida além da Água Negra não
era muito diferente, no que se referia à exploração. Mas havia
Severo, e os sonhos, e tudo que construíam juntos. Havia
dificuldades e desentendimentos, mas havia, antes de qualquer coisa,
afetos que ela mesma não poderia definir. Afetos que envolviam suas
histórias e todas as coisas que apreendiam, sobre si e sobre sua
gente. Como nessa jornada passaram a amar seu lugar! Sentiram vontade
de retornar, à medida que foram acumulando informações sobre o que
era pertencer a uma comunidade de moradores, talvez invisíveis para
todo o resto, no coração de uma fazenda.
Antes que o sono viesse, Bibiana se
levantou da cadeira. A luz do sol entrava pelas frestas da porta e da
janela. Abriu a porta, sentiu o sereno fresco da manhã tocar sua
pele. O que seria de tudo, agora, sem Severo? O que seria dela com o
vazio que tinha se apossado de seu corpo? Havia os filhos para
encaminhar na vida. E, antes que pensasse nos dias por vir, chegaram
as irmãs e a mãe. Salu foi para a cozinha preparar café. Belonísia
e Domingas sentaram na sala ao seu lado. As três olharam por um
tempo a terra além da porta, e o canto dos pássaros parecia ser o
mesmo de toda uma vida. Parecia ser o mesmo de um passado tão perto
e tão longe. O mesmo canto que as acompanhou na infância, enquanto
seguiam o caminho da roça de madrugada, ao lado do pai, para
espantar os chupins dos arrozais.
Mais tarde, a polícia chegou para fazer
a perícia do local do crime. Embora Inácio e Domingas tivessem
pedido insistentemente que Bibiana ficasse em casa, ela não cedeu e
acompanhou tudo, respondendo às perguntas que faziam. Alternava
momentos de completa apatia, quando as perguntas precisavam ser
repetidas mais de uma vez para que compreendesse, com momentos de
ansiedade e revolta, visíveis nos gestos do corpo e no timbre da
voz. Se esforçava tentando lembrar cada fração de tempo, cada
passo, cada pensamento, gestos, até o que estava escrito, palavra
por palavra, no bilhete da chegada do pai que havia voltado para
buscar quando Severo foi alvejado. Nada, mais nada sabia. Só que um
carro havia partido em alta velocidade em direção à estrada, foi o
que alguns moradores disseram. Os agentes foram até as casas das
pessoas que supostamente haviam visto o veículo em fuga. Anotaram a
cor do carro. Os vidros escuros, disseram, tinham sido um obstáculo
para saber quantos e quem estava em seu interior. Perguntaram se
notaram algo estranho nos dias que antecederam o crime e se Severo
havia brigado com alguém. Quando os moradores responderam sobre os
desentendimentos com o dono da fazenda, os policiais se deram por
satisfeitos, não prosseguiram. Bibiana e algumas das pessoas
presentes foram convidadas a prestar mais testemunhos na delegacia da
cidade.
Pareceu, durante um breve período, que
as coisas haviam mudado, talvez houvesse justiça para o que havia
ocorrido. Iriam investigar a morte de um homem simples como
investigariam a morte de um fazendeiro ou de qualquer homem poderoso
da cidade. Mas, algumas semanas depois, surgiu a notícia de que o
inquérito havia sido concluído. Que haviam descoberto um plantio de
maconha numa área próxima aos marimbus. Que Severo havia sido morto
numa disputa do tráfico de drogas na região.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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