No tempo da minha infância os pais
consideravam sua missão cumprida quando uma dessas coisas
acontecesse. Que a filha tirasse diploma de normalista. Que a filha
se casasse. Que o filho tirasse diploma de médico, engenheiro ou
advogado. Ou que ele conseguisse um emprego no Banco do Brasil.
Cumprida qualquer uma dessas condições, os pais podiam dizer:
“Podemos morrer. A sobrevivência dos nossos filhos está
garantida...” .
Tive uma precoce vocação para a
engenharia. Se eu tivesse me tornado um engenheiro, meus pais teriam
morrido em paz. Os engenheiros são pessoas que se dedicam a fabricar
artefatos inteligentes. Eu gostava de fabricar artefatos inteligentes
e foram muitos os brinquedos que fabriquei. Foi nas minhas
experiências precoces de engenheiro que aprendi a usar as
ferramentas.
Dos homens dotados de inteligência
engenharial, o que mais me assombra é Leonardo da Vinci. Era pintor,
músico, arquiteto, urbanista, planejou máquinas fantásticas, entre
elas uma máquina de voar e uma máquina de navegar debaixo d’água.
Leonardo da Vinci foi uma prova viva de que a beleza e a inteligência
podem andar de mãos dadas.
As primeiras manifestações da minha
vocação para a engenharia se manifestaram como uma curiosidade
incontrolável sobre a maneira como as coisas funcionavam. O que me
conduziu a experiências desastradas. A primeira delas de que me
lembro ocorreu quando eu deveria ter uns quatro anos. Observando uma
cristaleira na minha casa, fiquei intrigado com quatro pinos redondos
de madeira, enfiados debaixo de um vidro. Retirei-os dos buracos em
que se encontravam enfiados para uma observação mais aproximada,
sem notar que eles serviam de suporte para uma prateleira de vidro
cheia de taças. Creio que ainda não me dera conta da força da
gravidade. Para meu espanto, e contrariando minhas expectativas, a
prateleira não flutuou como deveria, caindo e estilhaçando-se
juntamente com as taças de cristal.
Depois — eu já devia ter uns sete anos
— fiquei curioso sobre o relógio de pulso da minha mãe.
Perguntei-me: “Como é o mecanismo que faz os seus ponteiros
girarem?”. A resposta a essa pergunta exigia uma pesquisa. Era
preciso ver o “lá dentro” do relógio. Abri o relógio. Usando
uma gilete quebrada como chave de fenda fui desatarraxando seus
minúsculos parafusos e retirando as peças soltas. Infelizmente essa
pesquisa não me esclareceu sobre o seu funcionamento. Restava-me,
então, montar o relógio de novo antes que minha mãe aparecesse.
Não consegui...
Era guerra. No rádio ouvíamos os bipes
dos telégrafos transmitindo mensagens secretas. Eu e os meus amigos
resolvemos formar uma sociedade para caçar os espiões nazistas que
deveriam ser muitos na cidade. Para que nossas mensagens não fossem
interceptadas pelo inimigo inventamos um código secreto:
gaderipoluty. Picolé se escrevia: orcpud. Mangueira: mgnaldrig. A
chave para a decifração do código era: g = a, d = e, r = i, p = o,
t = y. Tínhamos também uma linguagem secreta: “Çovê tosga ed
granfo onc jeifão?” — você gosta de frango com feijão? As
regras para a permutação dos sons nunca me foram claras. Nós as
aprendíamos pelo ouvido. Teríamos de aprender o código Morse. E
teríamos de ter telégrafos também. Pus-me a construir um
telégrafo, tirado da minha cabeça. O importante era que ele
estivesse ligado à eletricidade. É através da eletricidade que as
mensagens voam pelo espaço. Arranjei uns fios. Estavam descobertos.
Mas que importância tinha isso? Liguei-os ao meu telégrafo. A
seguir enfiei-os na tomada. Foi aquele estrondo que fez minha mãe e
a Tofa virem correndo. Imaginavam que algo muito grave estava
acontecendo. Acabado o estouro, os fios estavam arrebentados e
soldados um no outro. Desde então passei a ter o maior respeito por
fios e tomadas, especialmente em razão dos muitos choques que levei.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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