Não tenho conhecimento nem criatividade
suficiente pra calcular a real dimensão do mundo. Tantos lugares,
tantas pessoas, tantas culturas, tantos sons, tantos cheiros e
sabores. Mas, se Deus me permitisse escolher o lugar em que passarei
meu último dia de vida, não pensaria nem meia vez e lhe
responderia, com hashtag e tudo: #PartiuRuaDosAlípios, mais
conhecida como “a rua lá de casa”.
Chegando a Alto Santo, vindo de
Fortaleza, segue reto a vida toda até o beco de Seu Vicente
Claudino. Antes de quebrar à direita, indico uma parada pra tomar o
famoso caldo de Seu Vicente e chupar um dindim de coco queimado de
Dona Cira. Aí sim, de bucho cheio, desce reto rumo à pracinha.
Pronto, chegou dentro de mim.
A praça em si nem era tão bonita.
Bonita mesmo era a felicidade que ela nos proporcionava. Acho que ela
era bonita por dentro! Brinquei de tudo naquele pedaço de concreto
enfeitado de pés de castanhola. Pega-pega, esconde-esconde, roubar
bandeira, garrafão, bila, nota, tampa, travinha, acusado, chuta o
tubo, João ajuda, elástico, pular corda, macaca, sete pecados,
mata-mata, passa anel, vivo e morto, cai no poço... Enfim, brinquei
de ser livre, de ser vivo, de ser criança. Se juntar todos os
chaboques de dedo e couros de joelho que deixei naquele chão, dá
pra fazer mais dois ou três poetas.
Lembro quando papai comprou minha
primeira bicicleta, uma Monark marrom que Ademar vendeu porque tinha
comprado uma Caloi novinha pra Jocemar. Eu devia ter uns 5 ou 6 anos,
mas lembro exatamente da emoção e da alegria que senti quando vi
meu pai entrando em casa com ela na mão. Eu lavava a bicicleta todo
dia, só faltava passar perfume. Como nunca havia andado de
bicicleta, precisei do auxílio das rodinhas de apoio nos primeiros
dias. Mas sempre que passava um menino na rua andando soltinho eu
ficava com vergonha, me sentindo meio infantil aos 6 anos de idade.
Numa manhã de domingo, papai tirou as
rodinhas e disse: “Hoje vamos andar na praça.”
Eita! A praça era elevada, coisa de um
metro do chão, então só andava lá quem já sabia. Senão, a queda
era feia!
Para minha sorte, quando chegamos à
praça não tinha mais ninguém. Sentei e falei pra meu pai:
– Segura na sela, não me solta.
Quando fui dar a primeira pedalada,
chegaram dois coleguinhas andando soltinhos. Na mesma hora, virei
novamente e disse:
– Pode soltar, pai!
– Cuidado, a praça é alta, não
chega muito perto da beira.
Respondi, cheio de pose:
– Oxente, pai, eu já sei frear!
O freio falhou. E nessa hora lembrei que
já sabia frear, mas não sabia fazer curva. Mesmo assim, foi mais
ligeiro pra me levantar do que pra cair. Aliás, levantar pra cair de
novo, e de novo, e de novo…
Esse dia pra mim foi uma lição para a
vida toda.
Aprendi que é caindo que se aprende a
levantar. Que meu atrevimento, minha coragem, meu desejo de liberdade
e independência me trariam um risco muito grande de cair, mas que
parado, preso às rodinhas e às mãos de meu pai, de certo modo, eu
já estava caído.
A praça continua no mesmo lugar. Escrevo
este trecho do livro olhando pra ela, sentado numa cadeira de balanço
na calçada da casa de mamãe.
No rádio está tocando “Máquinas
humanas”, de Bartô Galeno, que por sinal merecia um especial na
Rede Globo do naipe de Roberto Carlos. Roberto – o de Maria Nilza –
está montando o pula-pula, Valderi já acendeu a churrasqueira,
Célia acabou de sair do Mercantil de Seu Nonato de Agripino com dois
litros de óleo nas mãos, certeza que é para fritar os salgados de
hoje à tarde. E olhando com mais esforço, ainda consigo enxergar,
do outro lado, Tereza Flor com um lenço na cabeça rezando um terço
escorada na janela. Afinal, a conexão com Deus é importante, mas os
movimentos da rua e a vida alheia também. Por falar nisso, daqui a
pouco vou lá entregar uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida que
comprei pra ela.
Literalmente, deixei pedaços de mim
nesse lugar – e não foi só couro de joelho e chaboque de dedo.
Essa rua, essa praça, tem pedaços de minha alma.
Peço a Deus que meus filhos possam
brincar, correr, cair, levantar, pular, sorrir e até chorar no exato
lugar em que eles começaram a existir. Afinal, quando o amor dos
nossos pais nasce, a gente já nasce junto. E foi justamente aqui que
beijei a mãe deles pela primeira vez.
Bráulio Bessa, in Um carinho na alma
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