quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Partiu Rua dos Alípios

Não tenho conhecimento nem criatividade suficiente pra calcular a real dimensão do mundo. Tantos lugares, tantas pessoas, tantas culturas, tantos sons, tantos cheiros e sabores. Mas, se Deus me permitisse escolher o lugar em que passarei meu último dia de vida, não pensaria nem meia vez e lhe responderia, com hashtag e tudo: #PartiuRuaDosAlípios, mais conhecida como “a rua lá de casa”.
Chegando a Alto Santo, vindo de Fortaleza, segue reto a vida toda até o beco de Seu Vicente Claudino. Antes de quebrar à direita, indico uma parada pra tomar o famoso caldo de Seu Vicente e chupar um dindim de coco queimado de Dona Cira. Aí sim, de bucho cheio, desce reto rumo à pracinha. Pronto, chegou dentro de mim.
A praça em si nem era tão bonita. Bonita mesmo era a felicidade que ela nos proporcionava. Acho que ela era bonita por dentro! Brinquei de tudo naquele pedaço de concreto enfeitado de pés de castanhola. Pega-pega, esconde-esconde, roubar bandeira, garrafão, bila, nota, tampa, travinha, acusado, chuta o tubo, João ajuda, elástico, pular corda, macaca, sete pecados, mata-mata, passa anel, vivo e morto, cai no poço... Enfim, brinquei de ser livre, de ser vivo, de ser criança. Se juntar todos os chaboques de dedo e couros de joelho que deixei naquele chão, dá pra fazer mais dois ou três poetas.
Lembro quando papai comprou minha primeira bicicleta, uma Monark marrom que Ademar vendeu porque tinha comprado uma Caloi novinha pra Jocemar. Eu devia ter uns 5 ou 6 anos, mas lembro exatamente da emoção e da alegria que senti quando vi meu pai entrando em casa com ela na mão. Eu lavava a bicicleta todo dia, só faltava passar perfume. Como nunca havia andado de bicicleta, precisei do auxílio das rodinhas de apoio nos primeiros dias. Mas sempre que passava um menino na rua andando soltinho eu ficava com vergonha, me sentindo meio infantil aos 6 anos de idade.
Numa manhã de domingo, papai tirou as rodinhas e disse: “Hoje vamos andar na praça.”
Eita! A praça era elevada, coisa de um metro do chão, então só andava lá quem já sabia. Senão, a queda era feia!
Para minha sorte, quando chegamos à praça não tinha mais ninguém. Sentei e falei pra meu pai:
Segura na sela, não me solta.
Quando fui dar a primeira pedalada, chegaram dois coleguinhas andando soltinhos. Na mesma hora, virei novamente e disse:
Pode soltar, pai!
Cuidado, a praça é alta, não chega muito perto da beira.
Respondi, cheio de pose:
Oxente, pai, eu já sei frear!
O freio falhou. E nessa hora lembrei que já sabia frear, mas não sabia fazer curva. Mesmo assim, foi mais ligeiro pra me levantar do que pra cair. Aliás, levantar pra cair de novo, e de novo, e de novo…
Esse dia pra mim foi uma lição para a vida toda.
Aprendi que é caindo que se aprende a levantar. Que meu atrevimento, minha coragem, meu desejo de liberdade e independência me trariam um risco muito grande de cair, mas que parado, preso às rodinhas e às mãos de meu pai, de certo modo, eu já estava caído.
A praça continua no mesmo lugar. Escrevo este trecho do livro olhando pra ela, sentado numa cadeira de balanço na calçada da casa de mamãe.
No rádio está tocando “Máquinas humanas”, de Bartô Galeno, que por sinal merecia um especial na Rede Globo do naipe de Roberto Carlos. Roberto – o de Maria Nilza – está montando o pula-pula, Valderi já acendeu a churrasqueira, Célia acabou de sair do Mercantil de Seu Nonato de Agripino com dois litros de óleo nas mãos, certeza que é para fritar os salgados de hoje à tarde. E olhando com mais esforço, ainda consigo enxergar, do outro lado, Tereza Flor com um lenço na cabeça rezando um terço escorada na janela. Afinal, a conexão com Deus é importante, mas os movimentos da rua e a vida alheia também. Por falar nisso, daqui a pouco vou lá entregar uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida que comprei pra ela.
Literalmente, deixei pedaços de mim nesse lugar – e não foi só couro de joelho e chaboque de dedo. Essa rua, essa praça, tem pedaços de minha alma.
Peço a Deus que meus filhos possam brincar, correr, cair, levantar, pular, sorrir e até chorar no exato lugar em que eles começaram a existir. Afinal, quando o amor dos nossos pais nasce, a gente já nasce junto. E foi justamente aqui que beijei a mãe deles pela primeira vez.

Bráulio Bessa, in Um carinho na alma

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