sábado, 25 de dezembro de 2021

O som do rugido da onça | VIII

O papel suporta qualquer coisa que se deseje. Martius sabe. Suporta o desenho e o poema, o sonho de liberdade e o medo, a cobrança e o pagamento da dívida. A palavra escrita permanece, eis no que acredita, e por sua permanência está convicto de que ela se confirma como superior à voz, que se dissipa, que se perde tão logo é proferida. É preciso ter, portanto, cautela com o que se escreve. Medir cada palavra, encontrar as vestes que lhe cabem com exatidão, corrigir, reescrever, remendar as falhas. Então, Martius escreve primeiro para suplantar a limitação da memória, a evaporação da voz, depois pela obrigação com o rei e principalmente para se convencer e convencer aos outros. Como se não tivesse ido ao porto dos Miranhas negociar pessoas em desacordo com Spix, ele documenta o seu desejo de verdade.
Sem dúvida, o tuxaua não atribuiu a minha vinda aqui com outro motivo que negociar prisioneiros; custou-lhe, portanto, a compreender, quando lhe ofereci pelo ornamento de penas, pelas armas e por uma bela samambaia, tantos machados e facas. Ele acrescentou agora a esses presentes mais cinco jovens índios, duas raparigas e três meninos. Desses desgraçados, que aceitei das mãos do desumano, com tanto maior empenho, quanto sabia que, ficando aqui, eles se destinavam sem cuidados à morte certa, visto já estarem todos atacados da febre; a mais velha das moças, levamo-la para Munique, duas outras entreguei-as ao sr. Videira Duarte, comandante militar de Ega, e ao sr. Pombo, ouvidor do Pará, e os outros dois, que já traziam o germe da morte, faleceram de endurecimento do fígado e hidropisia durante a viagem.”
Martius rasura. Omite o destino do menino. Precisa apagar rastros, estabelecer o lugar do corte entre o vivido e aquilo que gostaria que tivesse acontecido. Ou dar apenas aquilo que as pessoas precisam saber, parca ração da verdade. Toda rasura é uma edição. Sem dúvida o ato é em si mesmo um fracasso, e o cientista sabe disso, mas como se perceber aos olhos dos outros sem a marca do heroico incontestável? Expurgar, desviar, eliminar a variação torna-se um hábito para quem escreve ou reescreve a história, especialmente a história dos outros, mas toda raspagem ou borrão, toda nuvem de breu que cobre o desenho ou o primeiro escrito deixa sua marca, seus vestígios. Dizem que onça não tem faro igual ao de cachorro. Mas onça fareja a seu modo. Descobre resquício de passagem da presa. A presa é, em geral, inepta para encobrir o próprio rastro.
Eu, afortunadamente, vim para Manacapuru, ali Juri, da família Comá-Tapüjaa, juntou-se a nossa tripulação, acompanhou-nos a Munique.
Quando regressei de Japurá para Manacapuru, a corte de Zani (ele permanecera ainda doente em Ega), o capataz me mostrou os índios sob o comando do seu senhor, dos quais me foi permitido escolher um, que me atrevi a mostrar na Europa e educar à humanidade europeia. Na manhã antes da nossa partida, os índios homens apareceram enfileirados no pátio na frente da casa. Apontei para um belo menino Juri, o capataz o tirou da fila. Era filho do líder de uma horda indígena que morrera em combate.”
Martius recorda. Tem boa memória, mas, passados dez anos da primeira linha à revisão da obra, já não confia na imagem das mulheres que trataram sua febre na maloca, na pasta escura e pegajosa que o xamã passou nas tumefações de seu corpo. Prefere confiar na irritação que sentiu com a festa que o povo fazia enquanto seu amigo, o capitão Zani, tremia de impaludismo.
Martius escreve, coloca Iñe-e como prisioneira dos miranhas. Parece-lhe amoral, ao tomar essa decisão diante da folha em branco, o fato de ter aceitado como presente a filha de um tuxaua. Parece-lhe melhor ter salvado a menina de um horrível cativeiro. Parece-lhe melhor pintar o chefe como um demônio. Como não seria se oferecia a filha a um desconhecido? Palavras podem ser animais dóceis.
Assim que anoiteceu, vimo-nos cercados por várias centenas desses homens. Expôs-se ao meu olhar horrorizado uma cena mais do inferno que humana: uma dança de antropófagos depravados, exaltados pelo gozo do triunfo e pela sensualidade. No meio desses filhos do apetite bestial desenfreado, passamos as noites receosos e sem dormir: só de manhã, quando eles se recolhiam às redes, ou iam para o banho, podíamos também descansar. Durante o dia, poucos eram os que víamos desses endemoninhados, pois estavam dispersos pela mata e em cabanas remotas; mas logo ao cair da tarde surgiam eles de todos os lados e enchiam a praça, entre o rio e as cabanas, com um monótono sussurro, até ficarem bêbedos; então prorrompiam em berreiro feroz e, finalmente, soavam seus discordantes instrumentos, e começava o estrondo das canções e danças. Ainda se me confrange a alma, quando me lembro da horrível degeneração desses brutos. Devo supor que, durante a minha estada de algumas semanas entre esses selvagens, todas as manifestações de sua vida desleixada passaram-me diante dos olhos; mas senti tão dolorosa impressão da sua vizinhança, que, se eu contasse as particularidades nas quais se manifesta a característica dos mais rudes aborígenes brasileiros, também causaria a mais penosa impressão aos meus leitores. Fiquei persuadido de que esses selvagens não tinham ideia alguma do
Deus bondoso, pai e criador de todas as coisas; que somente domina nos seus destinos um ente mau, transformando-se em cada fatalidade, caprichoso e implacável, ao qual se sujeitam em cego e inconsciente medo. A alma desses homens primitivos decaídos não é imortal; ela apenas se manifesta na existência, não conscientemente, e só a fome e a sede lhes lembram as necessidades da vida. Justamente por isso, a vida não é considerada por eles um grande bem, e a morte lhes é indiferente. Com ela, tudo se acaba; só sobrevivem o ódio e a vingança como espectros atormentadores. O laço do amor é frouxo; em vez de ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; os mistérios da geração, profanados e às claras; o homem, por comodidade, meio vestido; a mulher, escrava nua; em vez de pudor, vaidade; e o casamento, um concubinato que se desfaz segundo o capricho; a preocupação do pai de família é seu estômago; quando cheio este, crua concupiscência; seu passatempo, glutonaria e ócio apático; sua ocupação, irregularidade; o trabalho das mulheres, cego e sem finalidade; os seus prazeres, repugnante lascívia; as crianças, fardo dos pais e, por isso, evitadas; a afeição paternal, somente cálculo, e a maternal, somente instinto; o pai de família, descuidado e sem autoridade; a educação, brincadeira, imitativa da mãe, cega despreocupação do pai; em vez de obediência filial, medo; emancipação recíproca ao alvitre; para a velhice, em vez de respeito, desafio; em vez de amizade, camaradagem; lealdade, enquanto não há tentação; relações subordinadas ao egoísmo vacilante; em vez de direito, a voz do egoísmo; em vez de patriotismo, inconsciente confiança nos parentes da mesma língua; ódio hereditário contra as tribos estranhas; mutismo, por pobreza de ideias; indecisão, por falta de discernimento; o domínio do tuxaua, por inaptidão dos demais, porém todos incapazes da verdadeira obediência moral, assim como do comando: — eis como vive o aborígene destas selvas! No mais primitivo grau da humanidade, é deplorável enigma para si mesmo e para o irmão do Oriente, em cujo peito ele não se anima, em cujos braços desvanece, tocado por humanidade superior como de mau sopro, e morre. A 12 de fevereiro, deixamos o porto dos Miranhas, lugar de cuja sombria impressão na minha alma só me senti curado depois do regresso à Europa, à vista da dignidade e grandeza humanas.”
Martius esquece o que escreveu. Ou não esquece, mas quer esquecer. Deliberadamente, rasura. E a rasura também é um método. Agora contempla o retrato de Iñe-e gravado na pedra. Para que contemple essa imagem, foi preciso antes existir uma pedra, que foi lixada em movimento infinito, em lemniscata, o universo em eterna repetição. Depois as feições da menina desenhadas em ponta de lâmina, o seu cabelo liso riscado ao meio, pelos ombros, sua cabeça pendida, os olhos tristes e amendoados, os lábios unidos, estampando sua resignação. Só depois o breu pulverizado, a tinta, a impressão. A pedra colocada na superfície da prensa, a manivela girando cuidadosamente para que a pedra não se espatife sob a compressão. Martius escreve e raspa o que escreveu e faz uma nova tentativa de verdade. Agora coloca na legenda a menina como pertencente a M. J. do Paco, governador do rio Negro. Para ele não há nome anterior a Isabella Miranha. Para ele, ela não tem história.
O papel suporta tudo, Martius bem sabe. Já velho, escreve em seu diário:
Eu apontei para o belo rapaz juri, o capataz o retirou da fila e o pai do menino não o acompanhou; em vez disso, seguiu-me com um olhar fixo: era uma pergunta ou era raiva? Eu não me esqueci desse olhar.
Letras são animais que, depois de domesticados, apenas obedecem, ele acredita.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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