terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O livro de receitas

Faltavam cinco dias para sua partida. Malas em curso, emoções à flor da pele, pendências mil. Efusiva e angustiada, viu sua avó entrar. O colar de contas azuis, o cabelo cor de prata, os passos doces como gemada. E não há no mundo nada mais doce do que avó. Nem filhos, nem maçã do amor.
A moça tinha algumas joias que decidiu não levar para a temporada fora do país por medo de perdê-las. Mas a joia mais valiosa ela deixava, com seu medo diário de perdê-la para o tempo.
A avó entrou em seu quarto, abriu a bolsa de alça curta na qual vagavam tradicionalmente um batom gasto, um molho de chaves e um suposto aparelho com fins de telefonia. Tirou de lá um caderninho quadriculado.
A moça ainda não sabia, mas constavam nele: caldo verde, bolo de carne, frango princesa, frango alho e óleo, beterraba agridoce, quindim, ambrosia, baba de moça e gelatina de coco. Ou seja, tudo o que ela jamais aprenderia com Jamie Oliver ou Nigella e tudo o que poderia lhe fazer um incomparável afago na alma através do paladar em noites frias.
A avó passou o caderno às suas mãos, segurando-as com as próprias, tão cheias de histórias marcadas pelos anos.
Filha, eu sempre imaginei qual seria a primeira neta para quem faria um livro de receitas. Achava mesmo que seria você, querida. Mas confesso que achava que seria às vésperas do seu casamento.
O turbilhão de emoções – as verdades, a partida, a angústia, a voz da avó – impediu-a de falar. Tentou responder, mas as palavras não saíam (nem da mente, muito menos da boca). Só lhe restou tentar balbuciar um agradecimento, mas foi impedida pela velhinha.
Pois não foi às vésperas do seu casamento, querida. Não foi como quando eu ganhei o meu, mais nova que você. Aliás, com a sua idade, eu já era mãe e já sabia fazer quase todas as receitas desse caderninho.
Poucos são os segundos mudos que permeiam os diálogos que não sejam incômodos. Aquele era um desses raros.
É, querida. Eu nunca podia ter imaginado que o primeiro caderno seria para uma neta que vai alçar voo solo pelo mundo. E eu nunca poderia imaginar o tamanho do meu orgulho por isso.
O silêncio ganhou o frescor das lágrimas da moça.
Vai, filha. Vai com Deus. Cozinhe pra você, descubra seus temperos e seja feliz. Vou estar aqui vibrando por você e te esperando voltar pra comer o frango com molho de cerveja de que você tanto gosta. Mas essa receita eu não coloquei no caderno, só pra garantir que você volta.
E piscou o olho direito enquanto acariciava o joelho da neta.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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