Faltavam cinco dias para sua partida.
Malas em curso, emoções à flor da pele, pendências mil. Efusiva e
angustiada, viu sua avó entrar. O colar de contas azuis, o cabelo
cor de prata, os passos doces como gemada. E não há no mundo nada
mais doce do que avó. Nem filhos, nem maçã do amor.
A moça tinha algumas joias que decidiu
não levar para a temporada fora do país por medo de perdê-las. Mas
a joia mais valiosa ela deixava, com seu medo diário de perdê-la
para o tempo.
A avó entrou em seu quarto, abriu a
bolsa de alça curta na qual vagavam tradicionalmente um batom gasto,
um molho de chaves e um suposto aparelho com fins de telefonia. Tirou
de lá um caderninho quadriculado.
A moça ainda não sabia, mas constavam
nele: caldo verde, bolo de carne, frango princesa, frango alho e
óleo, beterraba agridoce, quindim, ambrosia, baba de moça e
gelatina de coco. Ou seja, tudo o que ela jamais aprenderia com Jamie
Oliver ou Nigella e tudo o que poderia lhe fazer um incomparável
afago na alma através do paladar em noites frias.
A avó passou o caderno às suas mãos,
segurando-as com as próprias, tão cheias de histórias marcadas
pelos anos.
– Filha, eu sempre imaginei qual seria
a primeira neta para quem faria um livro de receitas. Achava mesmo
que seria você, querida. Mas confesso que achava que seria às
vésperas do seu casamento.
O turbilhão de emoções – as
verdades, a partida, a angústia, a voz da avó – impediu-a de
falar. Tentou responder, mas as palavras não saíam (nem da mente,
muito menos da boca). Só lhe restou tentar balbuciar um
agradecimento, mas foi impedida pela velhinha.
– Pois não foi às vésperas do seu
casamento, querida. Não foi como quando eu ganhei o meu, mais nova
que você. Aliás, com a sua idade, eu já era mãe e já sabia fazer
quase todas as receitas desse caderninho.
Poucos são os segundos mudos que
permeiam os diálogos que não sejam incômodos. Aquele era um desses
raros.
– É, querida. Eu nunca podia ter
imaginado que o primeiro caderno seria para uma neta que vai alçar
voo solo pelo mundo. E eu nunca poderia imaginar o tamanho do meu
orgulho por isso.
O silêncio ganhou o frescor das lágrimas
da moça.
– Vai, filha. Vai com Deus. Cozinhe pra
você, descubra seus temperos e seja feliz. Vou estar aqui vibrando
por você e te esperando voltar pra comer o frango com molho de
cerveja de que você tanto gosta. Mas essa receita eu não coloquei
no caderno, só pra garantir que você volta.
E piscou o olho direito enquanto
acariciava o joelho da neta.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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