Capítulo três | Os graus da tristeza
Eram sete os graus da tristeza.
Primeiro, Pai Todo entoava a queda da
pluma. Respeitava ao insulto e ao esquecimento.
Segundo, Pai Todo entoava o abandono dos
ninhos. Respeitava aos que ficavam perdidos com dificuldade em
regressar às aldeias.
Terceiro, Pai Todo entoava a pata
partida. Respeitava aos enfermos e feridos, aos que sangravam e
expunham os ossos.
Quarto, Pai Todo entoava o olho furado.
Respeitava aos que encantavam.
Quinto, Pai Todo entoava o ramo de luar.
Respeitava aos capturados para glória da encantaria do inimigo.
Sexto, Pai Todo entoava o sem voo.
Respeitava ao desagrado dos ancestrais, o alvoroço indignado do coro
da Pedra Que Soa.
Sétimo, Pai Todo entoava o fim do sonho.
Respeitava ao que ofendia à Verdadeiríssima Divindade. Agressão ou
recusa. Sua fúria sobre quem soa e sobre as matas, as maravilhas
líquidas e os bichos.
O curumim havia tocado e cantado as mais
belas melodias e fizera um esforço para ser generoso, queria que
obedecer fosse mais importante do que sentir. Seu desajuste com a
sensatez da comunidade era fundamental conter. E Honra assim fez.
Cantei a aurora, a cobra amistosa, o
tempo de três sóis, a tocaia alegre, a fertilidade sem temor, as
chuvas afinadas, o tucano cego, a pedra desperta, o fumo interior. Eu
cantei. Bem ali no lugar onde a cabeça do novo irmão desceu. Não
parei. Eu continuei sempre e estive longamente, sagrado Pai Todo, eu
estive longamente e toquei a flauta e foi um som alegre o que se
escutou. A mata conhece e entende. Foi um canto alegre.
O santo perguntou:
como te serviu essa tarefa.
Honra respondeu:
eu sinto.
Quantas estações quentes tens tu.
Perguntou depois o velho.
O curumim entoou:
treze. Estou tarde.
Estava demasiado tarde. Às treze
estações quentes já havia muito que deveria ter sido recuperado da
educação pelo igarapé pequeno. A candura dos que lá permaneciam
nem seria de boa companhia. Era imperioso que maturasse noutros
interesses e já deveria pedir ao corpo maior força e conhecer as
femininas para sanar folias. Honra sofria demasiado com a solidão e
pressupunha que seria desacompanhado à custa de sua condição
repugnante. Mexia no corpo entre a mata e afugentava-se de ser
percebido. Nem queria explicar-se a ninguém porque rodeava de
curumins bastante mais novos e suas transparências eram de urgências
desiguais. Não havia significado para os mais novos no que ele vinha
descobrindo. Julgava que a pressa de guerrear também era razão para
aquele desassossego. Talvez quando pudesse abater o inimigo se
reduzisse nas mexidas do corpo e dormisse com a mesma profunda
paciência com que dormiam os que acabavam de partir o ovo.
Pai Todo entoou:
não busques o grau da tristeza porque
mais concreto é ser uma dor, e ela vir da fúria que faz guerra e
não faz amuo. Não és triste, Honra, és zangado. Mas a zanga é
fora da normalidade e não te posso entoar seu grau, seria
verdadeiríssima ofensa. Apazigua-te na normalidade. Enfurece apenas
quando for necessária a defesa. Então, deves crescer para fera e
ferir.
Honra respondeu:
sinto.
E caiu um pouco mais sobre si, em sinal
da paz possível. Em sinal de quem voltaria a esperar. O tardio
explicou que o levariam para esforços guerreiros. Poderia
despedir-se dos transparentes no igarapé. Depois, a comunidade
haveria de lhe agradecer o apoio na sobrevivência complexa, na
construção contínua da segurança e do juízo, o inesgotável
labor opaco. O santo afeiçoou o curumim, entoando:
tens o nosso amor, Honra, e por teu
sofrimento as aldeias haverão de chorar. Intui também a abundância
de aqui estarmos, e levanta agora teus olhos à coragem.
E o pequeno corpo levantou os olhos à
coragem, um pouco enternecido e grato.
*
A comunidade era de duas aldeias, uma
subida e outra litoral, num todo de dois mil e vinte e um que soam,
divididos por mil seiscentos e vinte e sete opacos e trezentos e
noventa e quatro transparentes. Dois mil e dezanove que soam eram
aptos à lucidez e apenas dois entregues à emoção, um guerreiro
mais velho, a quem chamaram Nada Bom, e uma feminina mais jovem, a
quem chamaram Nada Azul. Em todos, era vibrante o entusiasmo. Ser
abaeté resultava em graça.
Estavam as malocas ali situadas para
antes da memória, as subidas e as do litoral. As ilhas e três mares
vinham de palavras antigas e sempre se renovavam as vedações no
perímetro conhecido, fixo por uma inteligência com que os
ancestrais haviam abençoado a comunidade. Ali era a terra dos
abaeté, erguida na mata densa que espiava o tremendo animal líquido,
circunscrição exuberante onde por bênção incidia o cuidado da
Verdadeiríssima Divindade. Ali, no órgão vital onde o começo
conservava seu sentido.
As aldeias, recolhidas dentro de suas
cercas, alumiavam o início da noite, seus fumos suavam da terra e da
vegetação que os emaranhava no sopro vocabular do vento. Os opacos
passavam seus cachimbos e incitavam os curumins e as curatãs a
aprender novas danças e a cantar novas canções que espalhariam
pelo terreiro. Aqueles que soam estavam ali desde que a divindade
dissera seus nomes. Deitaram corpo do som e pousaram um pé e depois
outro e caminharam. Foram inventados para aquele lugar pelo tamanho
de uma eternidade. À chegada da noite, guardados pelos guerreiros
que não dormiam e que escutavam qualquer ameaça de tocaia, as
aldeias depuravam os rituais, pedindo paz e pedindo a morte do
inimigo branco, esse múltiplo que se abeirava grotesco com cada vez
maior frequência, troando seu maligno grito de ferro. Alumiavam à
noite, os insectos afastavam e abriam o ar limpo que deixava de
incomodar suas peles, e a paz era profundamente sentida. Então, as
aldeias comoviam-se. Muitos adormeciam à lua, sem se acudirem pelo
coberto das malocas. Adormeciam na amplitude em que ficavam as ilhas,
os três mares, o céu inteiro, as estrelas vivas, a lua que
meditava.
Honra ficou pelo chão, exausto mais de
sentir do que de fazer alguma coisa. Não
adormeceu imediatamente. Comparou a
tristeza à dor e a dor à fúria. Comparou a tristeza à fúria e
entendeu a diferença. Gostava da noite em que o corpo imergia na
escuridão e se apagava como as fogueiras, perdendo garra. Não era
mais necessária a garra. A escuridão apaziguava sua pele. Para
apaziguar sua pele, a mãe lhe tinha feito todos os tratamentos e
pedidos. Por um tempo, Honra mesmo se convenceu de sofrer de alguma
enfermidade que curaria pela generosidade de alguma erva, como muito
haveria de merecer. Tantos banhos e pigmentos, tantos fumos e sucos,
tantas patas de aranha, beijos de peixe, raspa de pau, e nada. Sua
pele embrancava até embrancar muito demasiado. O seu cabelo também
e ainda pior. Havia alguma coisa queimando no cabelo. Um capim seco
que virava amarelo na ponta, podre. Entoava:
sagrada mãe, meu cabelo está podre.
Apodrece nas pontas muito diferente dos cabelos de outros curumins,
que os sabem aumentar negros até ao fim de sua extensão. Sagrada
mãe,
perguntava o feio,
cabelo é discurso como a voz. Ele
importa, será modo de a cabeça significar alguma coisa.
Boa de Espanto, encurtando o cabelo do
filho, garantia que não. Era acontecimento sem preponderância. E,
tão pouco podre, saía sem dificuldade. Limpava num corte.
Melhor que fosse sempre noite. O curumim
pensava assim. Melhor que fosse sempre noite e seu corpo inteiro
existisse nessa intensa escuridão onde a pele perdesse rigor e
significado. Se pudesse desejar ser quem não era, Honra desejava ser
confundido com tudo quanto era difícil de ver.
No sol seguinte, Pai Todo chefiou que as
femininas tomassem decisão acerca de deitar com Honra. Estava
recuperado do igarapé pequeno, educado para lá do que fora
obrigação, ia com treze estações quentes e mexia no corpo
sozinho. Entre todas as femininas, tão gentis as que os abaeté
tinham, alguma haveria de fazer gosto no curumim que se
complexificava. Assim acreditava o santo, e assim expôs o corpo
daquele que se abeirava de ser guerreiro e todas foram considerar
como lhe eram os baixios e as brancuras. Em tantas ocasiões haveriam
de ter sido vistos, que aos transparentes não se pedia demasiado
pudor. Mas havia muito que Honra se defendera de ser tão declarado.
Por se mexer no corpo, era mais ajuizado que o cobrisse um pouco,
cuidando de disfarçar surpresas súbitas que os músculos quisessem
inventar a partir de ideias descontroladas que se tornavam
frequentes. As femininas, gentis assim mesmo, entreolharam-se,
algumas até riram nervosas, como se lhes parecesse uma anedota, e
ninguém se pôs em pressas para avisar na aldeia subida aquilo que o
pajé chefiava na aldeia litoral. Era algo a que desobedeciam como se
a sensatez fosse desobedecer. E o santo vociferou. Os que soam
voltaram às suas tarefas e, de entre todos, as femininas foram
passando palavras breves à cata da notícia de alguma solução, que
não havia.
Quando o santo pediu a resposta, uma a
uma, todas as femininas entoaram que não. Nenhuma mexeria no corpo
do feio, o corpo ocupado. Não o usariam para a fertilidade, nem
queriam pensar na folia. Seria torto com os filhos, seria torto com a
mata. Verdadeirissimamente. Algumas entoaram seguras, sem mesmo
temerem a lição ancestral. Outras, mais submissas, entoaram
lamentando-se. Lamentavam o medo e o asco. E Honra pôde ouvir muito
bem como se expressavam, mais destemidas ou mais atrapalhadas, todas
igualmente recusando qualquer beira dele, para não se enojarem de
sua repugnância. O feio cobriu-se e, sempre mudo, desceu do coto da
figueira e caminhou para junto de Altura Verde, que havia jurado
levá-lo ao areal ao trabalho nas pirogas.
Nas pirogas, o grande guerreiro Pé de
Urutago era semelhante a uma árvore capaz de pernas e braços, capaz
de palavras. Escavava os troncos duas vezes mais rápido, nadava três
vezes mais rápido, subia dez vezes mais rápido. Se batesse a mão
num animal, o acabava. Se batesse a mão num que soa, o encantava.
Seu nome fora intuído para que tivesse pés de pouso no relâmpago.
Sabia desde sempre. Sua missão era escalar o clarão e tomar em suas
mãos o próprio osso do relâmpago. Diante dele, Honra era mínimo e
talvez ninguém. Apoucou sua voz e escavou na outra ponta para que
não reparassem como arranhava quase nada a madeira. Seu ruído era o
do bicho que afia a garra e não daquele que sequer abate um galho na
mata. Altura Verde o entendia. Procurava dar-lhe tempo, porque seus
músculos haveriam de aumentar e brevemente seria um guerreiro comum.
Haveria de diferir pelo desorientado de sua intrusão, essa pele
maldita, mas não pelo tamanho do corpo. Àquele sol, sem parar, o
trabalho abundava e Honra ainda lembrava a alegria que Pai Todo
acabara de lhe ensinar.
No ondulado do tremendo animal líquido,
o primeiro mar, o curumim por vezes reparava em como as pequenas
cintilações se acendiam mais fortes. Alguma promessa de maior
clarão existia. Honra intuía que algo prometia. Sentiu. Altura
Verde lhe perguntou:
estás bem.
E ele respondeu:
sinto.
No temporal das três ilhas, tão
tremendo temporal frequente, tantas vezes o clarão do relâmpago era
ao longe, demasiado longe, num lugar onde pudesse haver ossos de luz
deitados ao chão sem ninguém para os colher. O fogo riscado pelos
céus, entre tanta chuva, tanto tormentoso vento, haveria de um dia
abeirar a mão de Pé de Urutago e ele se levantaria com a perfeição
prometida.
O guerreiro branco voltou a entoar:
sinto.
Era a sua gratidão. Sabia desde sempre
que ser condecorado com a opacidade não lhe traria a oportunidade de
uma feminina. Que ingénuo seria esperar que seu aspecto ascoroso lhe
desse direito de ser amado.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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