terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Capítulo três | Os graus da tristeza


Capítulo três | Os graus da tristeza
Eram sete os graus da tristeza.
Primeiro, Pai Todo entoava a queda da pluma. Respeitava ao insulto e ao esquecimento.
Segundo, Pai Todo entoava o abandono dos ninhos. Respeitava aos que ficavam perdidos com dificuldade em regressar às aldeias.
Terceiro, Pai Todo entoava a pata partida. Respeitava aos enfermos e feridos, aos que sangravam e expunham os ossos.
Quarto, Pai Todo entoava o olho furado. Respeitava aos que encantavam.
Quinto, Pai Todo entoava o ramo de luar. Respeitava aos capturados para glória da encantaria do inimigo.
Sexto, Pai Todo entoava o sem voo. Respeitava ao desagrado dos ancestrais, o alvoroço indignado do coro da Pedra Que Soa.
Sétimo, Pai Todo entoava o fim do sonho. Respeitava ao que ofendia à Verdadeiríssima Divindade. Agressão ou recusa. Sua fúria sobre quem soa e sobre as matas, as maravilhas líquidas e os bichos.
O curumim havia tocado e cantado as mais belas melodias e fizera um esforço para ser generoso, queria que obedecer fosse mais importante do que sentir. Seu desajuste com a sensatez da comunidade era fundamental conter. E Honra assim fez.
Cantei a aurora, a cobra amistosa, o tempo de três sóis, a tocaia alegre, a fertilidade sem temor, as chuvas afinadas, o tucano cego, a pedra desperta, o fumo interior. Eu cantei. Bem ali no lugar onde a cabeça do novo irmão desceu. Não parei. Eu continuei sempre e estive longamente, sagrado Pai Todo, eu estive longamente e toquei a flauta e foi um som alegre o que se escutou. A mata conhece e entende. Foi um canto alegre.
O santo perguntou:
como te serviu essa tarefa.
Honra respondeu:
eu sinto.
Quantas estações quentes tens tu. Perguntou depois o velho.
O curumim entoou:
treze. Estou tarde.
Estava demasiado tarde. Às treze estações quentes já havia muito que deveria ter sido recuperado da educação pelo igarapé pequeno. A candura dos que lá permaneciam nem seria de boa companhia. Era imperioso que maturasse noutros interesses e já deveria pedir ao corpo maior força e conhecer as femininas para sanar folias. Honra sofria demasiado com a solidão e pressupunha que seria desacompanhado à custa de sua condição repugnante. Mexia no corpo entre a mata e afugentava-se de ser percebido. Nem queria explicar-se a ninguém porque rodeava de curumins bastante mais novos e suas transparências eram de urgências desiguais. Não havia significado para os mais novos no que ele vinha descobrindo. Julgava que a pressa de guerrear também era razão para aquele desassossego. Talvez quando pudesse abater o inimigo se reduzisse nas mexidas do corpo e dormisse com a mesma profunda paciência com que dormiam os que acabavam de partir o ovo.
Pai Todo entoou:
não busques o grau da tristeza porque mais concreto é ser uma dor, e ela vir da fúria que faz guerra e não faz amuo. Não és triste, Honra, és zangado. Mas a zanga é fora da normalidade e não te posso entoar seu grau, seria verdadeiríssima ofensa. Apazigua-te na normalidade. Enfurece apenas quando for necessária a defesa. Então, deves crescer para fera e ferir.
Honra respondeu:
sinto.
E caiu um pouco mais sobre si, em sinal da paz possível. Em sinal de quem voltaria a esperar. O tardio explicou que o levariam para esforços guerreiros. Poderia despedir-se dos transparentes no igarapé. Depois, a comunidade haveria de lhe agradecer o apoio na sobrevivência complexa, na construção contínua da segurança e do juízo, o inesgotável labor opaco. O santo afeiçoou o curumim, entoando:
tens o nosso amor, Honra, e por teu sofrimento as aldeias haverão de chorar. Intui também a abundância de aqui estarmos, e levanta agora teus olhos à coragem.
E o pequeno corpo levantou os olhos à coragem, um pouco enternecido e grato.

*

A comunidade era de duas aldeias, uma subida e outra litoral, num todo de dois mil e vinte e um que soam, divididos por mil seiscentos e vinte e sete opacos e trezentos e noventa e quatro transparentes. Dois mil e dezanove que soam eram aptos à lucidez e apenas dois entregues à emoção, um guerreiro mais velho, a quem chamaram Nada Bom, e uma feminina mais jovem, a quem chamaram Nada Azul. Em todos, era vibrante o entusiasmo. Ser abaeté resultava em graça.
Estavam as malocas ali situadas para antes da memória, as subidas e as do litoral. As ilhas e três mares vinham de palavras antigas e sempre se renovavam as vedações no perímetro conhecido, fixo por uma inteligência com que os ancestrais haviam abençoado a comunidade. Ali era a terra dos abaeté, erguida na mata densa que espiava o tremendo animal líquido, circunscrição exuberante onde por bênção incidia o cuidado da Verdadeiríssima Divindade. Ali, no órgão vital onde o começo conservava seu sentido.
As aldeias, recolhidas dentro de suas cercas, alumiavam o início da noite, seus fumos suavam da terra e da vegetação que os emaranhava no sopro vocabular do vento. Os opacos passavam seus cachimbos e incitavam os curumins e as curatãs a aprender novas danças e a cantar novas canções que espalhariam pelo terreiro. Aqueles que soam estavam ali desde que a divindade dissera seus nomes. Deitaram corpo do som e pousaram um pé e depois outro e caminharam. Foram inventados para aquele lugar pelo tamanho de uma eternidade. À chegada da noite, guardados pelos guerreiros que não dormiam e que escutavam qualquer ameaça de tocaia, as aldeias depuravam os rituais, pedindo paz e pedindo a morte do inimigo branco, esse múltiplo que se abeirava grotesco com cada vez maior frequência, troando seu maligno grito de ferro. Alumiavam à noite, os insectos afastavam e abriam o ar limpo que deixava de incomodar suas peles, e a paz era profundamente sentida. Então, as aldeias comoviam-se. Muitos adormeciam à lua, sem se acudirem pelo coberto das malocas. Adormeciam na amplitude em que ficavam as ilhas, os três mares, o céu inteiro, as estrelas vivas, a lua que meditava.
Honra ficou pelo chão, exausto mais de sentir do que de fazer alguma coisa. Não
adormeceu imediatamente. Comparou a tristeza à dor e a dor à fúria. Comparou a tristeza à fúria e entendeu a diferença. Gostava da noite em que o corpo imergia na escuridão e se apagava como as fogueiras, perdendo garra. Não era mais necessária a garra. A escuridão apaziguava sua pele. Para apaziguar sua pele, a mãe lhe tinha feito todos os tratamentos e pedidos. Por um tempo, Honra mesmo se convenceu de sofrer de alguma enfermidade que curaria pela generosidade de alguma erva, como muito haveria de merecer. Tantos banhos e pigmentos, tantos fumos e sucos, tantas patas de aranha, beijos de peixe, raspa de pau, e nada. Sua pele embrancava até embrancar muito demasiado. O seu cabelo também e ainda pior. Havia alguma coisa queimando no cabelo. Um capim seco que virava amarelo na ponta, podre. Entoava:
sagrada mãe, meu cabelo está podre. Apodrece nas pontas muito diferente dos cabelos de outros curumins, que os sabem aumentar negros até ao fim de sua extensão. Sagrada mãe,
perguntava o feio,
cabelo é discurso como a voz. Ele importa, será modo de a cabeça significar alguma coisa.
Boa de Espanto, encurtando o cabelo do filho, garantia que não. Era acontecimento sem preponderância. E, tão pouco podre, saía sem dificuldade. Limpava num corte.
Melhor que fosse sempre noite. O curumim pensava assim. Melhor que fosse sempre noite e seu corpo inteiro existisse nessa intensa escuridão onde a pele perdesse rigor e significado. Se pudesse desejar ser quem não era, Honra desejava ser confundido com tudo quanto era difícil de ver.
No sol seguinte, Pai Todo chefiou que as femininas tomassem decisão acerca de deitar com Honra. Estava recuperado do igarapé pequeno, educado para lá do que fora obrigação, ia com treze estações quentes e mexia no corpo sozinho. Entre todas as femininas, tão gentis as que os abaeté tinham, alguma haveria de fazer gosto no curumim que se complexificava. Assim acreditava o santo, e assim expôs o corpo daquele que se abeirava de ser guerreiro e todas foram considerar como lhe eram os baixios e as brancuras. Em tantas ocasiões haveriam de ter sido vistos, que aos transparentes não se pedia demasiado pudor. Mas havia muito que Honra se defendera de ser tão declarado. Por se mexer no corpo, era mais ajuizado que o cobrisse um pouco, cuidando de disfarçar surpresas súbitas que os músculos quisessem inventar a partir de ideias descontroladas que se tornavam frequentes. As femininas, gentis assim mesmo, entreolharam-se, algumas até riram nervosas, como se lhes parecesse uma anedota, e ninguém se pôs em pressas para avisar na aldeia subida aquilo que o pajé chefiava na aldeia litoral. Era algo a que desobedeciam como se a sensatez fosse desobedecer. E o santo vociferou. Os que soam voltaram às suas tarefas e, de entre todos, as femininas foram passando palavras breves à cata da notícia de alguma solução, que não havia.
Quando o santo pediu a resposta, uma a uma, todas as femininas entoaram que não. Nenhuma mexeria no corpo do feio, o corpo ocupado. Não o usariam para a fertilidade, nem queriam pensar na folia. Seria torto com os filhos, seria torto com a mata. Verdadeirissimamente. Algumas entoaram seguras, sem mesmo temerem a lição ancestral. Outras, mais submissas, entoaram lamentando-se. Lamentavam o medo e o asco. E Honra pôde ouvir muito bem como se expressavam, mais destemidas ou mais atrapalhadas, todas igualmente recusando qualquer beira dele, para não se enojarem de sua repugnância. O feio cobriu-se e, sempre mudo, desceu do coto da figueira e caminhou para junto de Altura Verde, que havia jurado levá-lo ao areal ao trabalho nas pirogas.
Nas pirogas, o grande guerreiro Pé de Urutago era semelhante a uma árvore capaz de pernas e braços, capaz de palavras. Escavava os troncos duas vezes mais rápido, nadava três vezes mais rápido, subia dez vezes mais rápido. Se batesse a mão num animal, o acabava. Se batesse a mão num que soa, o encantava. Seu nome fora intuído para que tivesse pés de pouso no relâmpago. Sabia desde sempre. Sua missão era escalar o clarão e tomar em suas mãos o próprio osso do relâmpago. Diante dele, Honra era mínimo e talvez ninguém. Apoucou sua voz e escavou na outra ponta para que não reparassem como arranhava quase nada a madeira. Seu ruído era o do bicho que afia a garra e não daquele que sequer abate um galho na mata. Altura Verde o entendia. Procurava dar-lhe tempo, porque seus músculos haveriam de aumentar e brevemente seria um guerreiro comum. Haveria de diferir pelo desorientado de sua intrusão, essa pele maldita, mas não pelo tamanho do corpo. Àquele sol, sem parar, o trabalho abundava e Honra ainda lembrava a alegria que Pai Todo acabara de lhe ensinar.
No ondulado do tremendo animal líquido, o primeiro mar, o curumim por vezes reparava em como as pequenas cintilações se acendiam mais fortes. Alguma promessa de maior clarão existia. Honra intuía que algo prometia. Sentiu. Altura Verde lhe perguntou:
estás bem.
E ele respondeu:
sinto.
No temporal das três ilhas, tão tremendo temporal frequente, tantas vezes o clarão do relâmpago era ao longe, demasiado longe, num lugar onde pudesse haver ossos de luz deitados ao chão sem ninguém para os colher. O fogo riscado pelos céus, entre tanta chuva, tanto tormentoso vento, haveria de um dia abeirar a mão de Pé de Urutago e ele se levantaria com a perfeição prometida.
O guerreiro branco voltou a entoar:
sinto.
Era a sua gratidão. Sabia desde sempre que ser condecorado com a opacidade não lhe traria a oportunidade de uma feminina. Que ingénuo seria esperar que seu aspecto ascoroso lhe desse direito de ser amado.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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