quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Desjejum, almoço e jantar

Não apenas a mesa da ceia é símbolo de poder a bordo de um navio de guerra, mas também a hora da ceia. O maior é quem almoça por último; e quem o faz mais cedo, o menor. Numa nau capitânia, o comodoro em geral almoça entre quatro e cinco da tarde; o capitão, por volta das três; os lugares-tenentes, às duas; enquanto o povo (palavra que, na nomenclatura do tombadilho, designa especificamente os marinheiros comuns) senta-se para comer sua carne salgada exatamente ao meio-dia.
Observa-se, portanto, que, enquanto os estamentos dos reis e dos lordes do mar alimentam-se em horários aristocráticos — prejudicando, assim, suas funções digestivas a longo prazo —, a plebe do mar, ou povo, preserva a saúde ao cultivar a boa e velha tradição inglesa elisabetana, reforçada por Franklin, de almoçar ao meio-dia.
Meio-dia! O centro natural, a pedra de toque, o próprio coração do dia. A essa hora o sol acaba de chegar ao topo de sua colina; e como parece suspender ali momentaneamente o movimento, antes de descer para o outro lado, é razoável supor que ele, então, dedica-se ao almoço; dando um eminente exemplo a toda a humanidade. O resto do dia é também chamado de tarde — afternoon, em boa e velha língua saxônica, cujo som suscita o sentimento de uma amurada a sotavento e uma soneca; um mar de verão, a brisa suave crispando-lhe a superfície; golfinhos deslizando num horizonte de sonho. Algo a ser recebido sem pressa e com prazer após o grande drama do dia. Mas como isso é possível, quando se almoça às cinco horas? Pois, afinal de contas, ainda que Paraíso perdido seja um nobre poema, e nós, marinheiros de fragata, partilhemos em ampla maioria da imortalidade dos imortais — confessemos candidamente, camaradas de convés, que nossos almoços constituem as mais significativas realizações da vida que vivemos sob a lua. O que é um dia sem almoço? Um dia sem almoço! Antes fosse noite.
Mais uma vez: o meio-dia é o horário natural para nós, marinheiros de fragata, almoçarmos, pois é a hora em que mesmo os relógios que inventamos chegam a seu termo, além das doze horas eles não vão; quando, ininterruptamente, repetem seu curso. É certo que Adão e Eva almoçavam ao meio-dia; assim como o patriarca Abraão, cercado de seu rebanho; e o antigo Jó com seus empregados de colheita e ceifeiros na imensa plantação de Uz; e, na Arca, o velho Noé em pessoa, que provavelmente começava o almoço precisamente às “oito badaladas”, com sua família e fazenda flutuantes.
Mas, embora essa hora antediluviana de almoço seja rejeitada por comodoros modernos e capitães, ela ainda resiste entre o povo sob seu comando. Muitas coisas razoáveis banidas da vida da elite encontram asilo em meio à turba.
Alguns comodoros são muito meticulosos no que se refere a não permitirem que homem a bordo ouse almoçar depois de encerrada sua própria sobremesa (isto é, a do comodoro). Nem mesmo o capitão. Diz-se, segundo boa autoridade, que um capitão certa feita arriscou-se a almoçar às cinco horas, quando o horário do comodoro era às quatro. No dia seguinte, segue a história, o capitão recebeu um comunicado particular e, em consequência dele, teve de almoçar, dali em diante, às três e meia.
Embora, no que toca ao horário de almoço a bordo de um navio de guerra, o povo não tenha razão para reclamar, no que se refere às aviltantes horas dedicadas ao desjejum e ao jantar, seus homens encontrariam uma boa razão quase para um motim.
Oito horas para o desjejum; meio-dia para o almoço; quatro horas para o jantar; e nenhuma refeição além dessas; nenhuma merenda, nenhum petisco. Por conta dessa organização (e em parte pelo fato de um quarto realizar suas refeições antes do outro, quando em alto-mar), todas as refeições das vinte e quatro horas se apinham no espaço de menos de oito! Dezesseis horas mortais se passam entre o jantar e o desjejum; incluindo, para um dos quartos de vigia, as oito horas na faina do convés! Isso é desumano; qualquer médico lhe dirá o mesmo. Pense nisso! Antes de o comodoro ter almoçado, você já jantou. E nas altas latitudes, no verão, faz sua última refeição do dia tendo de passar cinco horas ou mais à luz do sol!
Sr. secretário da Marinha, em nome do povo, o senhor devia se manifestar quanto a isso. Foram muitas as vezes em que eu, um gajeiro de mastro principal, vi-me prestes a desmaiar durante um tempestuoso quarto d’alva, quando todas as minhas energias eram exigidas — graças a essa forma infeliz e muito pouco filosófica de distribuir as refeições oferecidas pelo governo em alto-mar. Pedimos, secretário, que não se deixe levar pelo Honorável Conselho de Comodoros, que sem dúvida lhe dirá que oito, meio-dia e quatro são horários apropriados para que o povo faça suas refeições; uma vez que essas são as horas em que os quartos são rendidos. Pois, muito embora essa organização torne tudo muito ordenado e cristalino aos olhos dos oficiais e pareça, no papel, muito bom e refinado, fato é que faz mal à saúde; e, em tempo de guerra, traz consequências ainda mais sérias para a nação como um todo. Se as pesquisas necessárias forem feitas, talvez se descubra que, nessas ocasiões, quando as fragatas que adotam os horários supracitados para as refeições se deparam com um inimigo à noite, elas são de um modo geral derrotadas; isto é, nos casos em que os horários das refeições do inimigo são razoáveis; o que só acontece pelo fato de o povo das fragatas derrotadas lutar de estômago vazio, em vez de cheio.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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