Não apenas a mesa da ceia é símbolo de
poder a bordo de um navio de guerra, mas também a hora da ceia. O
maior é quem almoça por último; e quem o faz mais cedo, o menor.
Numa nau capitânia, o comodoro em geral almoça entre quatro e cinco
da tarde; o capitão, por volta das três; os lugares-tenentes, às
duas; enquanto o povo (palavra que, na nomenclatura do tombadilho,
designa especificamente os marinheiros comuns) senta-se para comer
sua carne salgada exatamente ao meio-dia.
Observa-se, portanto, que, enquanto os
estamentos dos reis e dos lordes do mar alimentam-se em horários
aristocráticos — prejudicando, assim, suas funções digestivas a
longo prazo —, a plebe do mar, ou povo, preserva a saúde ao
cultivar a boa e velha tradição inglesa elisabetana, reforçada por
Franklin, de almoçar ao meio-dia.
Meio-dia! O centro natural, a pedra de
toque, o próprio coração do dia. A essa hora o sol acaba de chegar
ao topo de sua colina; e como parece suspender ali momentaneamente o
movimento, antes de descer para o outro lado, é razoável supor que
ele, então, dedica-se ao almoço; dando um eminente exemplo a toda a
humanidade. O resto do dia é também chamado de tarde — afternoon,
em boa e velha língua saxônica, cujo som suscita o sentimento de
uma amurada a sotavento e uma soneca; um mar de verão, a brisa suave
crispando-lhe a superfície; golfinhos deslizando num horizonte de
sonho. Algo a ser recebido sem pressa e com prazer após o grande
drama do dia. Mas como isso é possível, quando se almoça às cinco
horas? Pois, afinal de contas, ainda que Paraíso perdido seja um
nobre poema, e nós, marinheiros de fragata, partilhemos em ampla
maioria da imortalidade dos imortais — confessemos candidamente,
camaradas de convés, que nossos almoços constituem as mais
significativas realizações da vida que vivemos sob a lua. O que é
um dia sem almoço? Um dia sem almoço! Antes fosse noite.
Mais uma vez: o meio-dia é o horário
natural para nós, marinheiros de fragata, almoçarmos, pois é a
hora em que mesmo os relógios que inventamos chegam a seu termo,
além das doze horas eles não vão; quando, ininterruptamente,
repetem seu curso. É certo que Adão e Eva almoçavam ao meio-dia;
assim como o patriarca Abraão, cercado de seu rebanho; e o antigo Jó
com seus empregados de colheita e ceifeiros na imensa plantação de
Uz; e, na Arca, o velho Noé em pessoa, que provavelmente começava o
almoço precisamente às “oito badaladas”, com sua família e
fazenda flutuantes.
Mas, embora essa hora antediluviana de
almoço seja rejeitada por comodoros modernos e capitães, ela ainda
resiste entre o povo sob seu comando. Muitas coisas razoáveis
banidas da vida da elite encontram asilo em meio à turba.
Alguns comodoros são muito meticulosos
no que se refere a não permitirem que homem a bordo ouse almoçar
depois de encerrada sua própria sobremesa (isto é, a do comodoro).
Nem mesmo o capitão. Diz-se, segundo boa autoridade, que um capitão
certa feita arriscou-se a almoçar às cinco horas, quando o horário
do comodoro era às quatro. No dia seguinte, segue a história, o
capitão recebeu um comunicado particular e, em consequência dele,
teve de almoçar, dali em diante, às três e meia.
Embora, no que toca ao horário de almoço
a bordo de um navio de guerra, o povo não tenha razão para
reclamar, no que se refere às aviltantes horas dedicadas ao desjejum
e ao jantar, seus homens encontrariam uma boa razão quase para um
motim.
Oito horas para o desjejum; meio-dia para
o almoço; quatro horas para o jantar; e nenhuma refeição além
dessas; nenhuma merenda, nenhum petisco. Por conta dessa organização
(e em parte pelo fato de um quarto realizar suas refeições antes do
outro, quando em alto-mar), todas as refeições das vinte e quatro
horas se apinham no espaço de menos de oito! Dezesseis horas mortais
se passam entre o jantar e o desjejum; incluindo, para um dos quartos
de vigia, as oito horas na faina do convés! Isso é desumano;
qualquer médico lhe dirá o mesmo. Pense nisso! Antes de o comodoro
ter almoçado, você já jantou. E nas altas latitudes, no verão,
faz sua última refeição do dia tendo de passar cinco horas ou mais
à luz do sol!
Sr. secretário da Marinha, em nome do
povo, o senhor devia se manifestar quanto a isso. Foram muitas as
vezes em que eu, um gajeiro de mastro principal, vi-me prestes a
desmaiar durante um tempestuoso quarto d’alva, quando todas as
minhas energias eram exigidas — graças a essa forma infeliz e
muito pouco filosófica de distribuir as refeições oferecidas pelo
governo em alto-mar. Pedimos, secretário, que não se deixe levar
pelo Honorável Conselho de Comodoros, que sem dúvida lhe dirá que
oito, meio-dia e quatro são horários apropriados para que o povo
faça suas refeições; uma vez que essas são as horas em que os
quartos são rendidos. Pois, muito embora essa organização torne
tudo muito ordenado e cristalino aos olhos dos oficiais e pareça, no
papel, muito bom e refinado, fato é que faz mal à saúde; e, em
tempo de guerra, traz consequências ainda mais sérias para a nação
como um todo. Se as pesquisas necessárias forem feitas, talvez se
descubra que, nessas ocasiões, quando as fragatas que adotam os
horários supracitados para as refeições se deparam com um inimigo
à noite, elas são de um modo geral derrotadas; isto é, nos casos
em que os horários das refeições do inimigo são razoáveis; o que
só acontece pelo fato de o povo das fragatas derrotadas lutar de
estômago vazio, em vez de cheio.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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