O veado-galheiro-do-norte reuniu a
família e:
— Rápido, pessoal, vamos dar o pira
que isto aqui na Amazônia está cheirando a fumaça!
O veado-mateiro, seu primo, e a capivara,
vizinha dos dois, sentiram o mesmo odor e dispararam também. Com
pouca sorte: no Maranhão ouviam-se tiros, em Mato Grosso pairava
cheiro de carne assada; em Goiás…
Lá embaixo, no Rio Grande do Sul, pobre
do marrecão-da-patagônia; distraiu-se e seu dia chegou. Não lhe
serviu de consolo ver o maçarico-preto e a caturrita tombarem do
mesmo galho.
Pelo Brasil inteiro ouve-se: Pum! Pum!
Pum! Ou, se preferem versões americanas, de quadrinhos: Bam!
Zing! Crash!
São os bichos caindo, as aves baixando
em voo morto, a caça legal, autorizada pelo Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal. Até 31 de agosto, aproveitem, caçadores.
Podem matar a seu gosto. Com apenas três restrições:
1) Cacem por esporte; não cacem para
ganhar dinheiro ou por maldade.
2) Evitem caçar certas espécies, que
são sagradas.
3) Não cacem muito; limitem o número de
animais caçados, para que sempre restem alguns no mato.
Tirante isso, meus prezados, a fauna lhes
pertence. Gosta de codorna, e não simplesmente de ovos da dita?
Então, vá a Minas, vá a São Paulo, ao Paraná. Estado do Rio,
não; codorna sob o governo do dr. Padilha tem de ser respeitada. É
para o inhambu que vai o seu paladar? Não queira prová-lo no
Espírito Santo nem na Bahia; dirija-se a São Paulo. Paca, essa boa
carne, está pulando à sua disposição no extremo Norte, mas
desista desse prato em Santa Catarina. O mesmo bicho é caçável num
estado, incaçável noutro.
Carece de o caçador levar na mão a arma
e a portaria do Instituto, para não se enganar, e um bom mapa do
Brasil também. O mesmo recomendo aos bichos: vocês têm que
aprender a ler, queridos; ou pelo menos arranjar um radinho de pilha,
que os oriente para onde devem se mandar, se residirem em unidade
federativa onde foi permitida a matança de vocês. Cuidado com
informantes e dedos-duros: qualquer descuido pode ser fatal. Estudem
as questões de limites que ainda persistem entre alguns estados,
para evitar o pior. Narceja pousada no galho, precisa saber se o
tronco fica do lado de cá ou do lado de lá; o brejo que ela aprecia
já foi fotogrametrado? Olhe o risco de um tiro legal, procedente de
qualquer das margens.
Outro problema, a numeração. Saracura,
o caçador licenciado tem direito de liquidar cinco; a no 6, que
andar escondida por perto, não está livre de ser imolada à
contagem errônea. Caça e caçador geralmente não chegam a acordo,
e que adiantaria mostrar a este a estatística de saracuras
sacrificadas? Ele se enganou, pronto: mata seis, mata sete.
Recomendar a presença de fiscal junto ao
caçador licenciado, para que não derrube mais de dez
marrecas-dos-pés-encarnados? Não quero pôr em dúvida a
integridade dos fiscais de qualquer natureza, mas carne de marreca é
tão sublime, quando bem preparada! Vá lá, pode derrubar ainda umas
três ou quatro, de pinga. Mas não se esqueça aqui do titio, hem? E
a ideia de instalar um computador nos capoeirões brasileiros, para
controlar o teto das caçadas, mostra que o surrealismo continua
vivo. De qualquer modo, fiquem sabendo: caçar dez irerês é
esportivo; onze, já constitui abuso contra a natureza. Quer acabar
com a raça?
— Mas eu sou campeão de caça a irerê
e queria bater meu recorde!
Calma, amizade. Você ainda tem direito a
abater dez inhambuxororós, dois inhambus-canela-roxa, dez codornas…
Seu clube lhe dará novos troféus.
Bem, a caça é permitida nas regiões e
períodos em que não se desenvolve a fase de reprodução das
espécies. É princípio universal, a que se submete nosso Código de
Caça. Respeita-se a reprodução, para que ela assegure a estocagem
de animais a serem caçados por esporte, sob tais e quais condições
restritivas. Garante-se a natureza, por um lado; por outro,
garante-se o esporte, que desfalca a natureza. Mas que esporte é
esse, fundado na morte de animais inocentes, e não na alegria da
vida, que dá sentido às competições da força e da higidez?
Palavra que não entendo. Não o entendia
Paul Léautaud, que se rejubilava quando o tiro destinado à caça
pegava a nádega de outro caçador. Não chego a tanto, mas suspeito
que falta ainda muito para se inscrever nos dicionários o exato
sentido da palavra civilização.
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
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