terça-feira, 28 de dezembro de 2021

De carteiras a carteiristas

Como a parte final do capítulo anterior pode ter causado estranheza aos que vivem em terra firme, habituados a deliciar-se com muito elevadas e românticas ideias quanto ao caráter dos homens de um navio de guerra, talvez não seja impróprio registrar aqui alguns fatos sobre tal tema, os quais podem servir para colocar o assunto sob seu verdadeiro prisma.
Em virtude da vida selvagem que vivem e de inúmeras outras causas (inútil mencioná-las), os marinheiros, como classe, partilham de uma perspectiva bastante flexível ante a noções de moralidade e aos Dez Mandamentos; ou, antes, assumem posições próprias diante de tais assuntos, preocupando-se pouco com definições teológicas e éticas de outros no tocante ao que pode ser criminoso ou errado.
Suas ideias sofrem forte influxo das circunstâncias. Eles subtrairão discretamente algo de alguém que os desagrade; e serão firmes em dizer que, em tal caso, furto não é roubo. Ou, quando o crime envolve algum divertimento, tal como o caso da jaqueta branca, o farão unicamente pelo prazer da piada; não obstante seja mister lembrar: eles jamais estragam a piada devolvendo o objeto roubado.
É considerada boa brincadeira, por exemplo — e inclusive muitas vezes levada a bordo do navio —, ficar conversando com um sujeito numa vigília durante a noite, enquanto outros cortam os botões de seu casaco. Uma vez cortados, porém, esses botões jamais crescerão de novo. Botões não afloram espontaneamente.
Talvez seja algo incontornável, mas a verdade é que, em meio à tripulação de um navio de guerra, é muito frequente encontrarmos grupos de criminosos que não se intimidam ante os delitos maiores. Essa gente não desconhece assalto à mão armada. Um bando é informado de que certo sujeito tem três ou quatro peças de ouro em sua bolsilha, que muitos marinheiros trazem amarradas ao pescoço ou guardadas longe dos olhos de quem quer que seja. Sabendo disso, deliberam seus planos; e, na hora devida, tratam de executá-lo. Talvez o homem marcado esteja apenas atravessando a coberta penumbrosa em direção à caixa de seu rancho; quando, não mais que de repente, salteadores surgem de seu esconderijo, jogam-no ao chão e, enquanto dois ou três passam-lhe a mordaça e o amarram, outro arranca-lhe a bolsilha do pescoço e foge com ela, seguido de seus camaradas. Isso se sucedeu mais de uma vez a bordo do Neversink.
Noutras ocasiões, ante a hipótese de que um marinheiro tem algo de valor escondido em sua maca, eles a rasgam na face inferior enquanto ele dorme, e fazem da conjectura uma certeza.
Seria infindável enumerar todos os furtos menores a bordo de um navio de guerra. Com algumas muito louváveis exceções, eles roubam e são roubados sucessivamente, até que, em se tratando de objetos menores, parece se consolidar um conjunto de bens comuns a toda a marujada; que, por fim, como um todo, se mostra relativamente honesta, uma vez que quase todos se corrompem. É inútil o esforço dos oficiais de instilar, por meio de ameaças de punição condigna, princípios mais virtuosos em sua tripulação. O bando é tão coeso que, dentre mil ladrões, não se identifica um.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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