terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Capítulo quatro | Mais abeira o branco


Boa de Espanto sentou e pediu que Altura Verde escutasse:
lembro quase nada. Eu deveria estar em tarefas, certamente fui ao longe para recados. Não sei. Não sei onde estaria. Sei que voltei como se caminhasse demasiado porque sentia muita dor e talvez qualquer percurso me fosse já distante por tanto penar. Atormentou meu espírito aquela brancura, eu não podia ver bem seu rosto, mas a pressa de seu corpo sobre o meu era feita da pele luminosa como se eu agarrasse um pouco de sol e ele não queimasse mas ferisse minha carne toda. Cortava. Não consigo lembrar se o avistei e tentei fugir. Se me colheu de traição. Eu lembro de estar sobre as folhas e havia talvez uma pedra com a qual me bateu. Julguei que tomasse meus ossos. Nem era para usar meu corpo por folia e ferir um filho em mim, eu julguei que ele estivesse cortando para tomar meus ossos.
Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento. Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada Boa de Espanto.
E a feminina entoou:
tinha sede ou acabara de beber. Havia água, talvez estivesse perto do igarapé, mas não escutava nada porque eu só escutava como algo quebrava sob mim e temia que fosse eu própria. Eu entendi que o animal entrava no meu corpo. Entendi. Mas havia sangue, eu devo ter adormecido na dor porque creio que o sangue me surpreendeu ou assustou. Ele era calado. Coberto de seu entrançado fino. O branco é uma fera que sabe ser silente. E meu berro passava sem eco por seu vazio. Eu sinto que berrei. Porque depois eu quis calar também. Morrer forte. E era sempre tudo
muito claro. Eu continuo a ver apenas um corpo de luz pesando sobre mim e essa impressão de algo quebrar. Podia ser osso, mas eu não quebrei osso, sagrado Altura Verde, tu sabes. Eu voltei de esqueleto inteiro. Estou inteira de cada pedaço. Talvez quebrasse algum galho no chão. Deve ter enchido minha boca de folhas ou de terra porque eu sinto sempre nojo. Eu sinto haver comido porcaria e talvez por isso tenha calado também. Eu não sei. E sinto que morri. Sagrado Altura Verde, eu inteira morri. Não devo ter levantado. Fui levantada. Algum espírito me obrigou a caminhar de volta e eu não sei que espírito foi.
Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento. Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada Boa de Espanto.
E a feminina entoou:
alguma coisa estava molhada. Talvez eu levasse água, talvez estivesse de mão mergulhada no igarapé. Quando despertei com o inimigo sobre meu corpo, eu pensei em água ou na vontade de beber. E agora acredito que tivesse tentado nadar, dissolver no curso, descendo. Ele agarrou minhas mãos, porque ainda me sabem suas presas aqui, comprimindo de encontro ao chão, afundando quase como se plantasse meus pulsos. Ele bateu muito, mas eu julgo que foi depois de amainar. Teve sua folia, amainou e bateu. Deve ter usado um galho que quebrou de algum tronco caído porque eu lembro de quebrar alguma coisa. Estava sempre quebrando alguma coisa. O ruído era o da mata morrendo junto.
Altura Verde perguntou:
e como era o inimigo, sagrada Boa de Espanto. Como era.
A feminina respondeu:
branco. Eu vi bem que era branco. Tinha dentes. Muitos dentes. Talvez estivesse sorrindo enquanto se apressava. Talvez mordesse. Ou talvez beijasse. Sujava minha boca com a sua boca. Ia devorar meu interior. Por isso, calei. Certamente foi assim. Eu vi menos seu rosto porque eu virei a cabeça para o chão de jeito a que não entrasse sua língua na minha. O animal mordia. E eu queria água para lavar seu gosto, o cheiro fétido. Fedia. Era uma luz que fedia. E olhava para o chão e alguns galhos ficavam ali e minha mão feria porque era esmagada contra os galhos. Eu cortei muito. Ainda antes que ele amainasse e batesse, eu já cortava. A pele abria e sentia que a carne deitava cada osso ao chão. Ou era meu medo. Devia ser meu medo, porque voltei cortada mas inteira. Doía muito, ainda sinto que dói. Eu queria soltar minha mão. Não sei se soltei. Perdi a força. Era forte para calar, não era forte para mais nada. E o peito dele começou a cobrir meu rosto. Era outras vezes o meu tamanho. Mas eu vi bem que era branco. O inimigo branco.
Altura Verde perguntou:
conta como viste.
A feminina respondeu:
era nos meus olhos. Tão claro que parecia imenso por ser indistinto da luz vinda do céu. Ou seriam seus olhos grandes metidos nos meus em pânico. Os olhos podem ser claros, sagrado Altura Verde. Tu crês que eles podem ser apenas um verde tímido num vazio. Eu julgo que era o tamanho dele, vazio. A amplitude de tudo quanto não há. Talvez por isso não possa lembrar do seu rosto. Jamais o poderei lembrar. O tamanho do inimigo branco era vazio. Como se fosse tão covarde que nem ali estivesse enquanto me atacava.
Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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