Boa de Espanto sentou e pediu que Altura
Verde escutasse:
lembro quase nada. Eu deveria estar em
tarefas, certamente fui ao longe para recados. Não sei. Não sei
onde estaria. Sei que voltei como se caminhasse demasiado porque
sentia muita dor e talvez qualquer percurso me fosse já distante por
tanto penar. Atormentou meu espírito aquela brancura, eu não podia
ver bem seu rosto, mas a pressa de seu corpo sobre o meu era feita da
pele luminosa como se eu agarrasse um pouco de sol e ele não
queimasse mas ferisse minha carne toda. Cortava. Não consigo lembrar
se o avistei e tentei fugir. Se me colheu de traição. Eu lembro de
estar sobre as folhas e havia talvez uma pedra com a qual me bateu.
Julguei que tomasse meus ossos. Nem era para usar meu corpo por folia
e ferir um filho em mim, eu julguei que ele estivesse cortando para
tomar meus ossos.
Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança
abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai
caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté.
Não haverá mais sofrimento. Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada
Boa de Espanto.
E a feminina entoou:
tinha sede ou acabara de beber. Havia
água, talvez estivesse perto do igarapé, mas não escutava nada
porque eu só escutava como algo quebrava sob mim e temia que fosse
eu própria. Eu entendi que o animal entrava no meu corpo. Entendi.
Mas havia sangue, eu devo ter adormecido na dor porque creio que o
sangue me surpreendeu ou assustou. Ele era calado. Coberto de seu
entrançado fino. O branco é uma fera que sabe ser silente. E meu
berro passava sem eco por seu vazio. Eu sinto que berrei. Porque
depois eu quis calar também. Morrer forte. E era sempre tudo
muito claro. Eu continuo a ver apenas um
corpo de luz pesando sobre mim e essa impressão de algo quebrar.
Podia ser osso, mas eu não quebrei osso, sagrado Altura Verde, tu
sabes. Eu voltei de esqueleto inteiro. Estou inteira de cada pedaço.
Talvez quebrasse algum galho no chão. Deve ter enchido minha boca de
folhas ou de terra porque eu sinto sempre nojo. Eu sinto haver comido
porcaria e talvez por isso tenha calado também. Eu não sei. E sinto
que morri. Sagrado Altura Verde, eu inteira morri. Não devo ter
levantado. Fui levantada. Algum espírito me obrigou a caminhar de
volta e eu não sei que espírito foi.
Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança
abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai
caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté.
Não haverá mais sofrimento. Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada
Boa de Espanto.
E a feminina entoou:
alguma coisa estava molhada. Talvez eu
levasse água, talvez estivesse de mão mergulhada no igarapé.
Quando despertei com o inimigo sobre meu corpo, eu pensei em água ou
na vontade de beber. E agora acredito que tivesse tentado nadar,
dissolver no curso, descendo. Ele agarrou minhas mãos, porque ainda
me sabem suas presas aqui, comprimindo de encontro ao chão,
afundando quase como se plantasse meus pulsos. Ele bateu muito, mas
eu julgo que foi depois de amainar. Teve sua folia, amainou e bateu.
Deve ter usado um galho que quebrou de algum tronco caído porque eu
lembro de quebrar alguma coisa. Estava sempre quebrando alguma coisa.
O ruído era o da mata morrendo junto.
Altura Verde perguntou:
e como era o inimigo, sagrada Boa de
Espanto. Como era.
A feminina respondeu:
branco. Eu vi bem que era branco. Tinha
dentes. Muitos dentes. Talvez estivesse sorrindo enquanto se
apressava. Talvez mordesse. Ou talvez beijasse. Sujava minha boca com
a sua boca. Ia devorar meu interior. Por isso, calei. Certamente foi
assim. Eu vi menos seu rosto porque eu virei a cabeça para o chão
de jeito a que não entrasse sua língua na minha. O animal mordia. E
eu queria água para lavar seu gosto, o cheiro fétido. Fedia. Era
uma luz que fedia. E olhava para o chão e alguns galhos ficavam ali
e minha mão feria porque era esmagada contra os galhos. Eu cortei
muito. Ainda antes que ele amainasse e batesse, eu já cortava. A
pele abria e sentia que a carne deitava cada osso ao chão. Ou era
meu medo. Devia ser meu medo, porque voltei cortada mas inteira. Doía
muito, ainda sinto que dói. Eu queria soltar minha mão. Não sei se
soltei. Perdi a força. Era forte para calar, não era forte para
mais nada. E o peito dele começou a cobrir meu rosto. Era outras
vezes o meu tamanho. Mas eu vi bem que era branco. O inimigo branco.
Altura Verde perguntou:
conta como viste.
A feminina respondeu:
era nos meus olhos. Tão claro que
parecia imenso por ser indistinto da luz vinda do céu. Ou seriam
seus olhos grandes metidos nos meus em pânico. Os olhos podem ser
claros, sagrado Altura Verde. Tu crês que eles podem ser apenas um
verde tímido num vazio. Eu julgo que era o tamanho dele, vazio. A
amplitude de tudo quanto não há. Talvez por isso não possa lembrar
do seu rosto. Jamais o poderei lembrar. O tamanho do inimigo branco
era vazio. Como se fosse tão covarde que nem ali estivesse enquanto
me atacava.
Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança
abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pela mata e nosso povo vai
caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté.
Não haverá mais sofrimento.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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