terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A ética da solidão


A criação literária, para Rilke, é uma experiência assustadora: algo terrível permanece sempre oculto e o escritor precisa saber que há um núcleo impermeável às palavras. Transformado, pela vocação, em aprendiz de feiticeiro, o autor submete-se à escassez da revelação – como o relâmpago cruzando o céu de um anjo. Esse pequeno vislumbre – o Belo, a arte verdadeira – só pode ser percebido na coragem da solidão.
Penetrar nesse território sagrado é buscar o humano desprovido de disfarces. Em Cartas a um jovem poeta, Rilke escreve o roteiro dessa dolorosa passagem em direção à essência. O ato de arrancar a fantasia cotidiana grudada à carne não significa apenas recolher-se à solidão seminal da criação. Mas, especialmente, desistir da moeda mais cobiçada, o reconhecimento, cruzar o pior dos umbrais – a indiferença – e encontrar o mais amedrontador dos mundos, povoado pela necessidade absoluta.
Nas palavras dirigidas a Franz Xaver Kappus, que lhe pediu socorro num momento decisivo da vocação, Rilke expõe as bases do seu processo criativo. É de sua própria literatura que está falando, limite que libera o caráter universal de uma obra considerada difícil. Mas não se trata de uma introdução ao que parece intrincado nos seus outros livros. É, antes, uma convivência com eles, uma irmandade – talvez mais feliz na clareza, mas igualmente soberba na claridade.
Cartas a um jovem poeta é a antologia de uma correspondência. Isso acontece graças a uma dupla generosidade. Primeiro, a do escritor consagrado que dedica parte do seu tempo a orientar um autor iniciante. Segundo, a do destinatário que omite sua participação, como forma de reconhecer uma espiritualidade superior. Esta é uma das lições deste pequeno livro. Pois não basta talento ou determinação, é preciso desprendimento. Compartilhar com o outro os segredos mais íntimos, e reconhecer no semelhante a possibilidade do gênio, gera o ambiente necessário para a literatura de verdade, que confere dignidade ao presente e desafia a voragem do tempo.
Ao aconselhar a solidão contra o brilhareco da vida literária, Rilke reconhece nela a verdadeira face da natureza humana, a fonte da arte que não pode ser apartada de uma vida norteada pela ética. É aí que reside a lucidez da espiritualidade, antídoto à irracionalidade da crítica – território minado do pseudopensamento científico. É como se fosse uma esgrima contundente contra o obscurantismo, uma forma de contrapor a seriedade do trabalho poético à superficialidade das análises. Esse aspecto polêmico reveste as Cartas de um alcance mais profundo do que o simples conselho, e mais amplo do que o trato do trabalho literário. A obra de arte, ser misterioso, precisa mais de amor do que compreensão para revelar seus segredos.
A receita amarga da sinceridade como resposta à admiração de Kappus é a lição mais dura deste feixe de palavras que cruza um século sem perder o fio do seu corte. Cem anos depois, as Cartas funcionam como um alerta para os vícios da nossa época, submetida, mais do que qualquer outra, à sordidez da superficialidade, justificada como insumo democratizador. É como se Rilke nos esperasse no futuro, com seus princípios intactos, não para cobrar a conta, mas com sua iluminação eternamente disponível para uma vida mais completa. Graças à tradução de Paulo Rónai, intelectual e multilinguista húngaro naturalizado brasileiro, as Cartas chegam até nós com o viço da linguagem bem resolvida. É quando os talentos de línguas diversas se sintonizam para privilegiar a leitura e, por meio dela, o conhecimento e a emoção. Rilke está bem acompanhado por Paulo Rónai e Cecília Meireles – que verteu para nossa língua A canção de amor e morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke, publicada na sequência das Cartas. A excelência da criação exige que as editoras encontrem as pessoas certas, para que a literatura se universalize em sua diversidade. O trabalho de Cecília Meireles na tradução da saga do ancestral morto na batalha, pinçado pelo poeta na história familiar, abre as portas para uma viagem literária de inúmeras revelações. A principal delas é que o mito pode ser encontrado – ou criado – a partir dos detalhes da memória pessoal e da saga comunitária.
Para Rilke, o trabalho demiúrgico do escritor não está acima ou fora do humano. Talvez o preceda – e esse é o aspecto mítico e ancestral da sua poesia. Ou apenas o revele na sua verdadeira grandeza – e esse deve ser o segredo da sua força e permanência.

Nei Duclós, in Prefácio a Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke

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