A criação literária, para Rilke, é
uma experiência assustadora: algo terrível permanece sempre oculto
e o escritor precisa saber que há um núcleo impermeável às
palavras. Transformado, pela vocação, em aprendiz de feiticeiro, o
autor submete-se à escassez da revelação – como o relâmpago
cruzando o céu de um anjo. Esse pequeno vislumbre – o Belo, a arte
verdadeira – só pode ser percebido na coragem da solidão.
Penetrar nesse território sagrado é
buscar o humano desprovido de disfarces. Em Cartas a um jovem
poeta, Rilke escreve o roteiro dessa dolorosa passagem em direção
à essência. O ato de arrancar a fantasia cotidiana grudada à carne
não significa apenas recolher-se à solidão seminal da criação.
Mas, especialmente, desistir da moeda mais cobiçada, o
reconhecimento, cruzar o pior dos umbrais – a indiferença – e
encontrar o mais amedrontador dos mundos, povoado pela necessidade
absoluta.
Nas palavras dirigidas a Franz Xaver
Kappus, que lhe pediu socorro num momento decisivo da vocação,
Rilke expõe as bases do seu processo criativo. É de sua própria
literatura que está falando, limite que libera o caráter universal
de uma obra considerada difícil. Mas não se trata de uma introdução
ao que parece intrincado nos seus outros livros. É, antes, uma
convivência com eles, uma irmandade – talvez mais feliz na
clareza, mas igualmente soberba na claridade.
Cartas a um jovem poeta é a
antologia de uma correspondência. Isso acontece graças a uma dupla
generosidade. Primeiro, a do escritor consagrado que dedica parte do
seu tempo a orientar um autor iniciante. Segundo, a do destinatário
que omite sua participação, como forma de reconhecer uma
espiritualidade superior. Esta é uma das lições deste pequeno
livro. Pois não basta talento ou determinação, é preciso
desprendimento. Compartilhar com o outro os segredos mais íntimos, e
reconhecer no semelhante a possibilidade do gênio, gera o ambiente
necessário para a literatura de verdade, que confere dignidade ao
presente e desafia a voragem do tempo.
Ao aconselhar a solidão contra o
brilhareco da vida literária, Rilke reconhece nela a verdadeira face
da natureza humana, a fonte da arte que não pode ser apartada de uma
vida norteada pela ética. É aí que reside a lucidez da
espiritualidade, antídoto à irracionalidade da crítica –
território minado do pseudopensamento científico. É como se fosse
uma esgrima contundente contra o obscurantismo, uma forma de
contrapor a seriedade do trabalho poético à superficialidade das
análises. Esse aspecto polêmico reveste as Cartas de um
alcance mais profundo do que o simples conselho, e mais amplo do que
o trato do trabalho literário. A obra de arte, ser misterioso,
precisa mais de amor do que compreensão para revelar seus segredos.
A receita amarga da sinceridade como
resposta à admiração de Kappus é a lição mais dura deste feixe
de palavras que cruza um século sem perder o fio do seu corte. Cem
anos depois, as Cartas funcionam como um alerta para os vícios
da nossa época, submetida, mais do que qualquer outra, à sordidez
da superficialidade, justificada como insumo democratizador. É como
se Rilke nos esperasse no futuro, com seus princípios intactos, não
para cobrar a conta, mas com sua iluminação eternamente disponível
para uma vida mais completa. Graças à tradução de Paulo Rónai,
intelectual e multilinguista húngaro naturalizado brasileiro, as
Cartas chegam até nós com o viço da linguagem bem
resolvida. É quando os talentos de línguas diversas se sintonizam
para privilegiar a leitura e, por meio dela, o conhecimento e a
emoção. Rilke está bem acompanhado por Paulo Rónai e Cecília
Meireles – que verteu para nossa língua A canção de amor e
morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke, publicada na
sequência das Cartas. A excelência da criação exige que as
editoras encontrem as pessoas certas, para que a literatura se
universalize em sua diversidade. O trabalho de Cecília Meireles na
tradução da saga do ancestral morto na batalha, pinçado pelo poeta
na história familiar, abre as portas para uma viagem literária de
inúmeras revelações. A principal delas é que o mito pode ser
encontrado – ou criado – a partir dos detalhes da memória
pessoal e da saga comunitária.
Para Rilke, o trabalho demiúrgico do
escritor não está acima ou fora do humano. Talvez o preceda – e
esse é o aspecto mítico e ancestral da sua poesia. Ou apenas o
revele na sua verdadeira grandeza – e esse deve ser o segredo da
sua força e permanência.
Nei Duclós, in Prefácio a Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke
Nenhum comentário:
Postar um comentário