quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A casa

Mudamos para a casa da pitangueira. Era enorme — para quem só conhecia caixas-de-fósforos. Muitas janelas, muita luz, um quintal com oito jabuticabeiras, uma pitangueira, quatro laranjeiras, dois limoeiros, um pessegueiro, quatro mangueiras, duas ameixeiras, duas janelas de cada lado e uma porta no meio, paredes caiadas de branco, madeiras azuis, tinta desbotada. Na frente da casa estava fincado um poste de pedra, um metro de altura, 20×20×20, que, segundo meu pai me explicou, tinha a função de impedir que os carros de bois carregados de lenha em tempos de chuva subissem nas calçadas das casas. A vida da cidade dependia dos carros de bois, porque todos os fogões eram a lenha.
A casa foi-me uma felicidade. Tábuas largas no assoalho, com muitas gretas. Através delas se via um espaço escuro, onde não se podia ir. Pelas gretas, em dias de corredeira, entravam os escorpiões. Corredeira era quando, por razões incompreensíveis, as formigas saíam dos seus formigueiros e começavam a andar pela casa disciplinadamente, como se fossem um exército em marcha. É certo que não respeitavam os escorpiões que viviam no espaço escuro a que me referi. Diante delas, os ferozes aracnídeos eram impotentes. Eram pequenas demais para o seu ferrão venenoso. Escorpião não tem medo de coisa grande. Tem medo de coisa pequena. Fugiam delas para um lugar seguro: dentro da casa.
Mas não tínhamos ansiedades. Convivíamos sem medo. A vida estava boa. Já tínhamos uma mesa de verdade. A privada tinha um buraco na louça, como se alguém tivesse deixado cair um tijolo dentro dela. Dinheiro para privada nova não havia. Mas meu pai não se apertava. Pegou um prato de sobremesa rachado e colou-o com cimento no buraco da privada. Por cinco anos foi assim. E também não tinha assento. Meu pai fez um assento com ripas. Quadrado. Por cinco anos nossos traseiros ficavam quadrados todas as vezes que fazíamos uso da privada remendada. A marca da privada — lembro-me nitidamente — era curioso: “Pescadas”. Menino, eu lia o “Pescadas” e me perguntava: “Pescar o quê? O que há dentro de uma privada que possa ser pescado?”. E eu ria...
Dia de festa era quando se ia lavar o assoalho da casa. Baldes e mais baldes de água. Detergente não havia. Sabão de verdade era caro. Mas havia as pitas, plantas que cresciam nos pastos. A gente ia aos pastos para colher as folhas de pita que iriam fazer as vezes de sabão. Em casa, as grandes e carnudas folhas eram cortadas em pedaços e submetidas a uma surra de pau que fazia com que elas secretassem uma baba pegajosa que tinha propriedades detergentes. Penso que é possível que algum desses xampus caros seja feito com baba de pita... Depois era aquela farra, a família inteira de pés descalços lavando a casa. Depois da lavação, a casa ficava fresca e perfumada.
A gente fazia uma outra coisa, todos juntos. De tarde cuidávamos da horta. O Ismael, meu irmão mais velho, o que cortou o meu cabelo escovinha, já com cabeça de engenheiro, se encarregava de que as mudas fossem plantadas em rigorosa simetria. Cebolinhas, tomateiros, quiabos, couves, alfaces, todos eram alinhados como um exército em parada. A terra, gorda e preta, não precisava de adubo: o adubo era produzido num buracão onde o lixo era transformado em esterco. Tinha de haver o buracão porque não havia coleta de lixo. Nos dias frios de julho, os campos de capim-gordura floridos ao longe, a Astolfina saía da cama antes que o sol esquentasse para lavar a geada branca que se acumulara nas folhas durante a noite. Se o sol esquentasse a geada as plantas ficariam queimadas e morreriam. Ela regava todos os canteiros com um regador. As folhas dos tomateiros exalavam um perfume verde.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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