Mudamos para a casa da pitangueira. Era
enorme — para quem só conhecia caixas-de-fósforos. Muitas
janelas, muita luz, um quintal com oito jabuticabeiras, uma
pitangueira, quatro laranjeiras, dois limoeiros, um pessegueiro,
quatro mangueiras, duas ameixeiras, duas janelas de cada lado e uma
porta no meio, paredes caiadas de branco, madeiras azuis, tinta
desbotada. Na frente da casa estava fincado um poste de pedra, um
metro de altura, 20×20×20, que, segundo meu pai me explicou, tinha
a função de impedir que os carros de bois carregados de lenha em
tempos de chuva subissem nas calçadas das casas. A vida da cidade
dependia dos carros de bois, porque todos os fogões eram a lenha.
A casa foi-me uma felicidade. Tábuas
largas no assoalho, com muitas gretas. Através delas se via um
espaço escuro, onde não se podia ir. Pelas gretas, em dias de
corredeira, entravam os escorpiões. Corredeira era quando, por
razões incompreensíveis, as formigas saíam dos seus formigueiros e
começavam a andar pela casa disciplinadamente, como se fossem um
exército em marcha. É certo que não respeitavam os escorpiões que
viviam no espaço escuro a que me referi. Diante delas, os ferozes
aracnídeos eram impotentes. Eram pequenas demais para o seu ferrão
venenoso. Escorpião não tem medo de coisa grande. Tem medo de coisa
pequena. Fugiam delas para um lugar seguro: dentro da casa.
Mas não tínhamos ansiedades.
Convivíamos sem medo. A vida estava boa. Já tínhamos uma mesa de
verdade. A privada tinha um buraco na louça, como se alguém tivesse
deixado cair um tijolo dentro dela. Dinheiro para privada nova não
havia. Mas meu pai não se apertava. Pegou um prato de sobremesa
rachado e colou-o com cimento no buraco da privada. Por cinco anos
foi assim. E também não tinha assento. Meu pai fez um assento com
ripas. Quadrado. Por cinco anos nossos traseiros ficavam quadrados
todas as vezes que fazíamos uso da privada remendada. A marca da
privada — lembro-me nitidamente — era curioso: “Pescadas”.
Menino, eu lia o “Pescadas” e me perguntava: “Pescar o quê? O
que há dentro de uma privada que possa ser pescado?”. E eu ria...
Dia de festa era quando se ia lavar o
assoalho da casa. Baldes e mais baldes de água. Detergente não
havia. Sabão de verdade era caro. Mas havia as pitas, plantas que
cresciam nos pastos. A gente ia aos pastos para colher as folhas de
pita que iriam fazer as vezes de sabão. Em casa, as grandes e
carnudas folhas eram cortadas em pedaços e submetidas a uma surra de
pau que fazia com que elas secretassem uma baba pegajosa que tinha
propriedades detergentes. Penso que é possível que algum desses
xampus caros seja feito com baba de pita... Depois era aquela farra,
a família inteira de pés descalços lavando a casa. Depois da
lavação, a casa ficava fresca e perfumada.
A gente fazia uma outra coisa, todos
juntos. De tarde cuidávamos da horta. O Ismael, meu irmão mais
velho, o que cortou o meu cabelo escovinha, já com cabeça de
engenheiro, se encarregava de que as mudas fossem plantadas em
rigorosa simetria. Cebolinhas, tomateiros, quiabos, couves, alfaces,
todos eram alinhados como um exército em parada. A terra, gorda e
preta, não precisava de adubo: o adubo era produzido num buracão
onde o lixo era transformado em esterco. Tinha de haver o buracão
porque não havia coleta de lixo. Nos dias frios de julho, os campos
de capim-gordura floridos ao longe, a Astolfina saía da cama antes
que o sol esquentasse para lavar a geada branca que se acumulara nas
folhas durante a noite. Se o sol esquentasse a geada as plantas
ficariam queimadas e morreriam. Ela regava todos os canteiros com um
regador. As folhas dos tomateiros exalavam um perfume verde.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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