Os novos proprietários chegaram um ano
após a morte de Zeca Chapéu Grande. O homem era alto e corpulento.
Negociou com os herdeiros da família Peixoto e esteve, durante o
período de negociação, algumas vezes na fazenda. Tinha cor de
areia e ferrugem como a que se vê na beira do rio Santo Antônio.
Usou essa cor de pele muitas vezes, nas discussões com Severo e com
o povo, para dizer que não tinha nada contra ninguém, que ele mesmo
tinha antepassados negros, dos quais se dizia orgulhoso. A mulher que
o acompanhava, e depois veio a residir na fazenda, era branca e
pequena, parecia não ter trinta anos. Tinham dois filhos que
chegaram muito tempo depois, por breves períodos, porque estudavam
na cidade. No começo, andavam pra cima e pra baixo, o homem tinha os
olhos grandes para as coisas que via na fazenda, e a mulher conseguia
fingir interesse. Era atabalhoada, entrava nos lugares sem saber se
poderia entrar, repetia as mesmas frases de espanto, sorria de forma
quase discreta do que chamava de ignorância do povo, quando se
dispunha a perguntar e obtinha uma resposta diferente da que presumia
ser verdadeira.
Salomão parecia se interessar por tudo.
Se dispunha a escutar o que os moradores diziam, para refutar depois,
dizendo que sabia mais, que viu sobre tal coisa em algum lugar que
ninguém compreendia o nome. Almoçaram na casa de Firmina numa das
visitas à fazenda, enquanto escolhiam o lugar para construir a casa
grande. Firmina matou uma galinha para receber os novos donos de Água
Negra, fez um pequeno banquete com abóbora e quiabo, picadinho de
palma e arroz. Ela se sentia apenas uma inquilina, embora morasse ali
há mais de quarenta anos, e, apesar de o dono estar ali há tão
pouco tempo, sentia como se devesse favores por estar na terra
alheia. Salomão comeu o que lhe serviram. A mulher não tocou na
comida, dizia que tinha uma alimentação especial, agradeceu por
tudo, mas ficou claro que sentia nojo. Das casas em condições
ruins, das roupas, da precariedade de não se ter água encanada.
Numa das vezes, teve dor de barriga e sentiu horror ao descobrir que
não havia banheiro em nenhuma das casas, nem na escola. Depois de
resistir, quando seu rosto foi mudando de cor, do corado de sol para
o pálido, teve que se aliviar no mato. Entregou um pedaço de papel,
que haviam lhe dado, sujo, para que uma das mulheres pegasse. “Não,
a senhora pode deixar lá no mato mesmo”, foi o que as que a
observavam de longe disseram, entre riso e ofensa. Voltou
contrariada, considerando que teria dificuldades para se adaptar à
vida naquele lugar.
Aquela fazenda parecia ser a menina dos
olhos do novo senhor. Ele almejava se tornar um grande produtor de
café, sem saber se era possível o cultivo naquela terra.
Depois quis criar porcos. Por último,
quis fazer de Água Negra um santuário ecológico, extasiado que
estava com a abundância de água e mata preservada, que resistiam à
depredação da Chapada. Em nenhum dos seus planos o povo de Água
Negra tinha lugar. Eram meros trabalhadores que deveriam ser
deslocados para dormitórios. Deveriam viver efetivamente longe da
fazenda, porque eram intrusos na propriedade alheia.
Salomão contratou trabalhadores para
ajudar no transporte dos materiais e eventuais serviços para a obra
da casa. Ela se tornou uma paisagem estranha aos moradores.
Derrubaram pés de buritis e dendês que frutificavam num terreno
pantanoso, onde começavam os marimbus. Drenaram parte da água,
levantaram uma casa de madeira e vidro. Foi o suficiente para Severo
lembrar que havia muito existia uma demanda por melhoria das casas de
barro dos moradores, precárias, que poderiam ruir ou ser fonte de
doenças. Era preciso construir com materiais mais duradouros. Uns
concordavam, outros não. Diziam que se a terra era do dono, ele é
que poderia dizer o que poderia ser feito. Sempre havia sido assim.
Não havia motivos para mudar agora. Outros estavam cientes de seus
direitos. Há bastante tempo, muito antes da morte de Zeca Chapéu
Grande, Severo e outros trabalhadores traziam informações sobre as
permissões negadas aos moradores da fazenda. Muitos nunca estiveram
conformados com os interditos, mas durante muito tempo foi necessário
permanecer quieto e submisso para garantir a sobrevivência. Agora
falam em direito dos pretos, dos descendentes de escravos que viveram
errantes de um lugar para o outro. Falam muito sobre isso. Que agora
tem lei. Tem formas de garantir a terra. De não viverem à mercê de
dono, correndo daqui pra acolá, como no passado.
Sou uma velha encantada, muito antiga,
que acompanhou esse povo desde sua chegada das Minas, do Recôncavo,
da África. Talvez tenham esquecido Santa Rita Pescadeira, mas a
minha memória não permite esquecer o que sofri com muita gente,
fugindo de disputas de terra, da violência de homens armados, da
seca. Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio
bravo. A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos
sonhos, muitas vezes.
Duas semanas antes da morte de Severo,
Salomão e Estela deixaram a casa da fazenda. Partiram para uma
viagem, era o que se dizia. Mas o desejo do povo, depois do enterro,
foi queimar a casa de madeira e vidro. Queriam vê-la reduzida a
cinza, moída feito poeira, consumida pelas chamas. Sentiam vontade
de destruir tudo o que lhes foi negado.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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