Ele pulou da carona como um gato, apesar
dos seus cento e doze quilos de puro charme. Estava atrasado para ser
entrevistado para um emprego que já sabia não querer. Essas coisas
que a gente faz. Sorte, pelo menos, que a entrevista era num horário
besta, 11h40. Não há horário mais besta. Talvez 15h15, não sei. É
uma boa briga. Enfim, horário besta em que o metrô não está tão
abarrotado de gente.
Linha Azul, sentido Tucuruvi. São Judas
é a terceira, geralmente tem lugar. Tinha. Sentou-se com aquele
tradicional medo de a calça do terno descosturar nesses momentos
escolhidos a dedo. Ele era bem bonito. Cabelo farto, já um pouco
grisalho, mesmo que antes dos trinta. Nunca foi magro, sempre
esbanjou quilos e charme. Costeletas, perfume bom, nunca precisou de
muito mais.
Ainda se recuperava do fora que tinha
levado do último namorado, que adorava seu perfume, mas andava
querendo cheirar novos pescoços. Procurava não pensar muito nisso
(nítido sinal de que já pensava demais). Eles tinham uma daquelas
relações que pareciam não ter hora pra acabar, até que acabou de
uma hora pra outra. Ia ficar tudo bem; ele sempre divou na noite
paulistana.
Saúde, Praça da Árvore, Santa Cruz,
Vila Mariana. Entra um cão-guia. E entra o surpreendente guiado: tão
cego, tão lindo, tão gay. Nosso protagonista ficou desnorteado, era
muita informação. Não se vê um cego todo dia, não se vê um gay
tão evidente toda hora, e, sobretudo, não se vê homem bonito por
aí. Raça ameaçada de extinção e nem por isso tutelada por alguma
ONG.
Ele, que sempre foi o rei do flerte,
especialmente no metrô (daqueles flertes em que os olhares continuam
quando um fica no vagão e o outro na plataforma, até se perderem no
vácuo), quis flertar mais do que nunca e se sentiu de mãos atadas.
O que eu faço? Por onde começo? E se ele for descer no Paraíso?
Ofereço ajuda? Claro que não, idiota. Brinco com o cachorro? Também
não, ele tá em serviço. Pergunto se ele tem horas? Afe. Não.
Foi Ana Rosa, foi Paraíso e foi
Vergueiro, e ele não desceu. Cavalera, ele está com uma camiseta
da Cavalera. O protagonista vai à loucura. São Joaquim,
Liberdade. Preciso paquerar esse cara antes que ele desça na Sé.
Dane-se, vou lá. Colocou a mão levemente no ombro dele e disse:
– Cara, você quer sentar? Acabei de
vagar um lugar.
– Não, não, valeu, vou descer na
próxima.
(Sorte e pressa, sorte e pressa,
ele pensava.)
– Beleza. E… E uma cerveja um dia
qualquer, você topa?
(Ele ri, surpreso.)
– Pô, essa proposta é melhor do que o
assento. (Riram.) Como você chama?
– Davi. Prazer. E você?
– Vinícius. Prazer.
E então uma voz imperativa interrompeu:
– Estação Sé. Desembarque pelo lado
esquerdo do trem.
– Você vai descer, né? Me passa seu
número antes. Deixa eu pegar o celular.
O trem parou, o cão-guia tomou a
dianteira. Ele foi falando o número enquanto saía. No final,
gritou:
– Boa sorte no que você vai fazer
agora. Não sei o que é, mas o perfume vai ajudar!
O protagonista respondeu:
– Valeu! Mas acho que a coisa mais
importante que eu tinha pra fazer hoje, acabei de fazer.
As portas fecharam. Ele não tirava os
olhos daquela dupla na plataforma. O trem foi saindo, e para sua
surpresa Vinícius foi virando o pescoço junto com o trem, como quem
ainda olhava para ele dentro do vagão. Davi sentiu um frio na
barriga como em nenhum outro flerte. Pelo jeito, ambos iriam viver
muita coisa que, literalmente, nunca tinham visto na vida.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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