sábado, 20 de novembro de 2021

Oito em um

 O seguinte. Quero fazer análise de grupo, doutor. Não se preocupe com a formação do grupo. Eu formo sozinho, compreende? Posso contar ao senhor uma pá de infâncias que eu tive, uma pá de vidas que vou levando. Até que essa multiplicidade não me encucava. Quer dizer: até. Pois Fernando Pessoa não era muitos e simultâneos? Quando morreu o Alberto Caeiro, o Álvaro de Campos e o Ricardo Reis, sem falar no Bernardo Soares, continuaram socioexistindo sem briga. Mas comecei a me aborrecer quando os meus diferentes eus entraram a exigir de mim funcionamento sincrônico em lugares distantes uns dos outros. Distantes e incompatíveis psicologicamente. O senhor não avalia o problema. Para dar um exemplo: Nunca fui a Capri mas preciso urgente ir lá, é necessidade visceral de um eu que me agrada muito, juntei uns dólares, cuidei de passaporte que não foi mole, fui à agência de turismo. Aí o meu eu tijucano, ele é de morte, não arreda pé da rua General Roca, meu domicílio global, se recusa a embarcar. Vê que papelão? Vivia discutindo com ele a conveniência de ser transigente. Capri é só um mês, nem o dinheiro daria pra mais, que é um mês na vida de um tijucano? O desgraçado empacou. Pior é que tem outro eu muito marcado também, que gostaria de viver na Paraíba criando bode. Sabe como é, fixação dos verdes anos, o bode era uma oleografia pendurada na parede lá de casa, um bode vermelho que tinha barba de apóstolo, muito sérios ele e a barba, que balançava ao vento. Juro que balançava. Por favor, não vá dizer que eu tenho complexo de bode expiatório, não odeio ninguém nem quero transferir nenhuma culpa mas o fato é que. Onde é mesmo que eu estava? Ah, meus muitos. Não é meus múltiplos, doutor, não tenho nada com essa transa da Petite Galerie, que reproduz cem vezes em acrílico um modelo único. Não sou de acrílico, sou matéria viva, pulsante… Não quer saber quantos sou? Contei oito, doutor. Dá ou não para uma análise de grupo? Faço questão de ser analisado sozinho em grupo. Mas tem um galho. Uma de minhas personalidades eu gostaria de reservar para mais tarde. É o meu lado, meu lado não, meu ser menina-de-jardim-de-infância. Por favor, me deixe continuar ligado nela, é tudo quanto há de mais virginal em meu conglomerado enroladíssimo. Bem que eu gostaria de guardá-lo para a própria Melanie Klein, não é por desmerecer do doutor, é porque eu li a tradução portuguesa de Envy and Gratitude e fiquei vidrado nela, que mulher! Não perco de jeito nenhum concerto de Jacques Klein, só porque ele deve ser parente dela. Melanie é um tremendo barato, uma glória. Mas quero ficar pelo menos uns cinco anos ainda curtindo esse euzinho infantil, que é minhas doçuras. Então, vamos combinar. Esse fica para depois. Tenho muita pena de me desfazer de minhas riquezas, doutor. Perdão: de meus problemas. O ideal seria conciliar. Complexo de castração eu tenho, mas não é medo de perder uma parte boa do corpo, é de perder este ou aquele indivíduo que me habita, e depois sentir falta dele como de uma perna amputada. Ordem! Ordem é o que eu gostaria que o senhor instituísse na minha habitação moral coletiva. O progresso eu arranjo. Mas o senhor não me diz nada. Não vejo nenhuma resposta em seus olhos, e tenho a sensação de estar falando sozinho em Brasília, numa área ainda não construída. Começo a me arrepender de estar levando este papo solitário com o senhor. Sei lá se o senhor me aceita para análise, e amanhã faz um romance, uma peça de teatro com a minha vida. Não é que esteja duvidando de sua ética profissional, mas se amanhã despertar no senhor um indivíduo novo, com fome de escrever, quem me diz que não serei eu o material de sua criação? Até que ponto me verei despido e denunciado em praça pública? Pois eu não lhe disse nada, mas ia lhe dizer sobre um eu celerado que já cometeu em mim, ou por mim, coisas bem negras. É justamente o quinto, o terrível, o pior de todos, quis estrangular a garotinha do jardim de infância… por pouco-pouco ele estrangulava. A sorte foi o meu eu da rua General Roca acudir a tempo. Daí, não tenho jeito de contrariá-lo quando ele me diz: “Capri, não. Nada além da praça Saens Peña”. O quarto, o sexto e o sétimo, bem, chega, já falei demais. Preciso guardar esses três como reserva. Não lhe dou nenhuma dica sobre eles. Por que iria abrir as comportas com o primeiro Freud que me aparece pela frente? Tem coisas que Freud não explica. Nem Jung nem Adler nem Rank nem Horney nem Chico Xavier nem… Fico por aqui. Se me derem uma explicadinha de cada um de meus problemas, se tudo fica limpo e computadorizado, que vai ser de mim, condenado à unidade integral? Não leve a mal, doutor, mas aqui me despeço e prometo nunca mais procurar o senhor, tá bom? Tchau! Hoje à noite embarco para Campina Grande e levo a patota na raça.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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