Nas suas Confissões, tidas como
um dos mais profundos documentos autobiográficos jamais escritos,
santo Agostinho confessa a sua vocação prematura para o furto. As
pessoas que pensam pouco resolvem o problema do furto com rapidez,
classificando-o ou como pecado ou como crime. Santo Agostinho, ao
contrário, tomou o furto como objeto de suas meditações
psicológicas e teológicas. O desejo de furtar é universal. Todos
temos o desejo de furtar. Se assim não fosse não haveria razão
para o mandamento que diz “Não furtarás”. Os mandamentos marcam
o lugar de um desejo profundo da alma que não deve ser realizado.
Sobre tais desejos o mandamento coloca um “não”.
As Sagradas Escrituras dizem que a
epopeia humana se iniciou com um furto. Havia, no Éden, um fruto
sedutor que não poderia ser comido. Seduzidos pela serpente, Adão e
Eva fizeram o que lhes fora proibido: colheram o fruto e o comeram,
para se tornarem como os deuses. A mitologia grega também coloca um
furto em nosso começo: Prometeu furtou o fogo, propriedade dos
deuses, e deu-o aos homens. Assim, um psicanalista estará dando
demonstração de não conhecer a alma humana se não colocar seus
objetos mais queridos em lugar seguro. Porque será perfeitamente
compreensível que um paciente, possuído pelo amor transferencial,
deseje levar o seu terapeuta para casa, representado no objeto
proibido.
Santo Agostinho relata que ele e os seus
amigos tinham um grande prazer em roubar peras de um vizinho, o que é
perfeitamente compreensível, porque peras são frutas deliciosas.
Acontecia, entretanto, que no seu pomar havia peras muito mais doces
que as do vizinho. Poderia comê-las sem precisar roubar. Ele roubava
as peras do vizinho, que não iria comer por serem muito azedas, e as
dava aos porcos. A conclusão a que se chega, portanto, é que ele
não furtava peras para satisfazer o seu desejo de comer peras. Ele
furtava peras para satisfazer o seu desejo de furtar... Furtar é um
prazer.
Comigo aconteceu diferente: furtei pelo
desejo de comer as frutas. Aconteceu assim. A casa ao lado da minha
tinha um quintal imenso, com muitas árvores frutíferas. Perto do
muro havia uma árvore de tronco liso, carregada de frutinhas
vermelhas bem pequenas e brilhantes. Os donos da casa não ligavam
para elas. As frutinhas vermelhas estavam entregues aos pássaros.
Que inveja dos pássaros! Sem asas para comer as frutinhas, eu tinha
de inventar um meio. O desejo põe a inteligência a funcionar. Meu
desejo de comer as frutinhas, que depois me disseram que eram
pitangas, chamou a minha inteligência. “Inteligência minha,
ajude-me a descobrir um jeito de chupar as frutinhas vermelhas.” A
primeira inteligência a atender ao meu pedido foi a inteligência
criminosa, que sugeriu que eu pulasse o muro e subisse na árvore.
Mas não ouvi o seu conselho porque a prudência me disse que era
perigoso. Veio então outra inteligência, atendendo ao pedido do meu
desejo, inteligência de engenheiro: “Construa uma maquineta de
roubar pitangas...” . Já naquele tempo eu sabia as coisas que
McLuhan iria saber muitas décadas depois: todo meio técnico é uma
extensão do corpo. Uma maquineta de apanhar pitangas deveria ser uma
extensão do meu braço. Um braço comprido artificial? Um bambu. Mas
um bambu apenas não apanharia as pitangas. As pitangas cairiam no
chão quando tocadas por ele. Assim, além do braço de bambu, minha
maquineta de roubar pitangas deveria ter uma mãozinha: uma lata de
massa de tomates amarrada à ponta do bambu seria uma boa mãozinha.
Um dente na lata de massa de tomate, feita com um alicate, faria as
vezes de um dedo. Assim construí minha maquineta de roubar pitangas
e roubei quantas pitangas quis e as comi. Nunca mais precisei usar a
máquina de roubar pitangas porque seis meses depois nos mudamos para
a casa onde estava a pitangueira...
Agora vejam: se, em vez de morar na
caixa-de-fósforos, eu morasse na casa da pitangueira, não teria
tido a chance de exercitar a minha inteligência engenharial.
Bastaria que eu subisse na pitangueira. É o desejo que faz a
inteligência funcionar. Ou, como diz a sabedoria popular, é a
necessidade que faz o sapo pular…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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