sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Meu primeiro furto

Nas suas Confissões, tidas como um dos mais profundos documentos autobiográficos jamais escritos, santo Agostinho confessa a sua vocação prematura para o furto. As pessoas que pensam pouco resolvem o problema do furto com rapidez, classificando-o ou como pecado ou como crime. Santo Agostinho, ao contrário, tomou o furto como objeto de suas meditações psicológicas e teológicas. O desejo de furtar é universal. Todos temos o desejo de furtar. Se assim não fosse não haveria razão para o mandamento que diz “Não furtarás”. Os mandamentos marcam o lugar de um desejo profundo da alma que não deve ser realizado. Sobre tais desejos o mandamento coloca um “não”.
As Sagradas Escrituras dizem que a epopeia humana se iniciou com um furto. Havia, no Éden, um fruto sedutor que não poderia ser comido. Seduzidos pela serpente, Adão e Eva fizeram o que lhes fora proibido: colheram o fruto e o comeram, para se tornarem como os deuses. A mitologia grega também coloca um furto em nosso começo: Prometeu furtou o fogo, propriedade dos deuses, e deu-o aos homens. Assim, um psicanalista estará dando demonstração de não conhecer a alma humana se não colocar seus objetos mais queridos em lugar seguro. Porque será perfeitamente compreensível que um paciente, possuído pelo amor transferencial, deseje levar o seu terapeuta para casa, representado no objeto proibido.
Santo Agostinho relata que ele e os seus amigos tinham um grande prazer em roubar peras de um vizinho, o que é perfeitamente compreensível, porque peras são frutas deliciosas. Acontecia, entretanto, que no seu pomar havia peras muito mais doces que as do vizinho. Poderia comê-las sem precisar roubar. Ele roubava as peras do vizinho, que não iria comer por serem muito azedas, e as dava aos porcos. A conclusão a que se chega, portanto, é que ele não furtava peras para satisfazer o seu desejo de comer peras. Ele furtava peras para satisfazer o seu desejo de furtar... Furtar é um prazer.
Comigo aconteceu diferente: furtei pelo desejo de comer as frutas. Aconteceu assim. A casa ao lado da minha tinha um quintal imenso, com muitas árvores frutíferas. Perto do muro havia uma árvore de tronco liso, carregada de frutinhas vermelhas bem pequenas e brilhantes. Os donos da casa não ligavam para elas. As frutinhas vermelhas estavam entregues aos pássaros. Que inveja dos pássaros! Sem asas para comer as frutinhas, eu tinha de inventar um meio. O desejo põe a inteligência a funcionar. Meu desejo de comer as frutinhas, que depois me disseram que eram pitangas, chamou a minha inteligência. “Inteligência minha, ajude-me a descobrir um jeito de chupar as frutinhas vermelhas.” A primeira inteligência a atender ao meu pedido foi a inteligência criminosa, que sugeriu que eu pulasse o muro e subisse na árvore. Mas não ouvi o seu conselho porque a prudência me disse que era perigoso. Veio então outra inteligência, atendendo ao pedido do meu desejo, inteligência de engenheiro: “Construa uma maquineta de roubar pitangas...” . Já naquele tempo eu sabia as coisas que McLuhan iria saber muitas décadas depois: todo meio técnico é uma extensão do corpo. Uma maquineta de apanhar pitangas deveria ser uma extensão do meu braço. Um braço comprido artificial? Um bambu. Mas um bambu apenas não apanharia as pitangas. As pitangas cairiam no chão quando tocadas por ele. Assim, além do braço de bambu, minha maquineta de roubar pitangas deveria ter uma mãozinha: uma lata de massa de tomates amarrada à ponta do bambu seria uma boa mãozinha. Um dente na lata de massa de tomate, feita com um alicate, faria as vezes de um dedo. Assim construí minha maquineta de roubar pitangas e roubei quantas pitangas quis e as comi. Nunca mais precisei usar a máquina de roubar pitangas porque seis meses depois nos mudamos para a casa onde estava a pitangueira...
Agora vejam: se, em vez de morar na caixa-de-fósforos, eu morasse na casa da pitangueira, não teria tido a chance de exercitar a minha inteligência engenharial. Bastaria que eu subisse na pitangueira. É o desejo que faz a inteligência funcionar. Ou, como diz a sabedoria popular, é a necessidade que faz o sapo pular…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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