terça-feira, 9 de novembro de 2021

Gabriela Mistral

Gabriela Mistral

Tinha dito anteriormente que conheci Gabriela Mistral em minha cidade, Temuco, de onde depois ela foi embora para sempre. Gabriela estava na metade de sua difícil e trabalhosa vida e era exteriormente monástica, algo assim como uma madre superiora de uma ordem retilínea.
Naquela época escreveu os “Poemas del hijo”, feitos em prosa escorreita, lavrada e constelada, porque sua prosa foi muitas vezes sua poesia mais penetrante. Como nestes “Poemas del hijo” descreve a gravidez, o parto e o crescimento, algo confuso se sussur-rou em Temuco, algo impreciso, algo inocentemente torpe, talvez um comentário grosseiro que feria sua condição de solteira, feito por essa gente ferroviária e madeireira que eu conheço tanto, gente bravia e tempestuosa que chamam pão ao pão e vinho ao vinho. Gabriela se sentiu ofendida e morreu ofendida.
Anos depois, na primeira edição de seu grande livro, pôs uma longa nota inútil contra o que se tinha dito e sussurrado sobre sua pessoa naquelas montanhas do fim do mundo.
Na ocasião de sua vitória memorável, com o Prêmio Nobel consagrando sua cabeça, devia passar na viagem pela estação de Temuco. Os colégios a aguardavam todos os dias. As jovens estudantes chegavam salpicadas pela chuva e palpitantes de copihues. O copihue é a flor austral, a corola bela e selvagem da Araucanía. Inútil espera. Gabriela Mistral arranjou para passar por ali de noite, procurou um complicado trem noturno para não receber os copihues de Temuco.
Bem, e isto depõe contra Gabriela? Isto quer dizer simplesmente que a ferida permanecia no íntimo de sua alma e não se fecharia facilmente. Isto revela na autora de tanta grandiosa poesia que em sua alma lutaram, como em qualquer alma de homem, o amor e o rancor.
Para mim teve sempre um sorriso aberto de boa camaradagem, um sorriso de farinha em sua cara de pão moreno.
Mas quais foram as melhores substâncias no forno de seus trabalhos? Qual foi o ingrediente secreto de sua sempre dolorosa poesia?
Não vou averiguar isso e com certeza não conseguiria sabê-lo e, mesmo que soubesse, não iria dizer.

Neste mês de setembro florescem os joios; e o campo é uma alfombra tremulante e amarela. Já faz quatro dias, aqui na costa, que o vento sul golpeia com magnífica fúria. A noite está cheia de seu movimento sonoro. O oceano é a um tempo aberto cristal verde e titânica brancura.
Chegas, Gabriela, amada filha destes joios, destas pedras, deste vento gigantesco. Todos te recebemos com alegria. Ninguém esquecerá teus cantos aos espinheiros, às neves do Chile.
És chilena. Pertences ao povo. Ninguém esquecerá tuas estrofes aos pés descalços de nossos meninos. Ninguém esqueceu tua “palavra maldita”. És uma comovedora partidária da paz. Por essas e por outras razões te amamos.
Chegas, Gabriela, aos joios e aos espinheiros do Chile. Vale bem a pena que te dê as boas-vindas verdadeiras, florida e áspera, em conformidade com tua grandeza e com nossa amizade inquebrantável. As portas de pedra e a primavera de setembro se abrem para ti. Nada mais grato a meu coração do que ver teu largo sorriso entrar na sagrada terra que o povo do Chile faz florescer e cantar.
Cabe a mim compartilhar contigo a essência e a verdade que, graças à nossa voz e nossos atos, será respeitada. Que teu coração maravilhoso descanse, viva, lute, cante e creia na oceânica e andina solidão da pátria. Beijo tua nobre fronte e reverencio tua extensa poesia.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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