sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Um presente para uma sereia

Passamos rapidamente diante do café, sem parar.
Nossa boa senhora havia assado um leitão-de-leite no forno e nos esperava em pé na soleira.
Pusera de novo em volta do pescoço a mesma fita amarela adamascada, e assim, pesadamente enfarinhada com pó, os lábios empastelados com uma espessa camada vermelha, ela estava pavorosa. Logo que nos viu, todas as suas carnes se puseram em movimento, alegradas, seus pequenos olhos brilhavam gaitadamente e se fixaram nos bigodes retorcidos de Zorba.
Assim que a porta da rua se fechou, Zorba segurou-a pela cintura.
Feliz ano novo, minha Bubulina! — disse-lhe. — Olha o que eu lhe trouxe! — e beijou-lhe a nuca gordinha e enrugada.
A velha sereia teve um arrepio de prazer, mas não desviou sua atenção. Os olhos estavam fixos no presente. Pegou-o, desfez o cordão dourado, olhou e deu um grito.
Debrucei-me para ver: numa cartolina grossa, esse malandro do Zorba havia pintado em quatro cores — louro, castanho, cinzento e negro — quatro grandes couraçados sobre um mar azul. Diante dos couraçados, alongada sobre as ondas, toda branca, toda nua, os cabelos desfeitos, os seios erguidos, com uma cauda de peixe e uma fitinha amarela no pescoço, nadava uma sereia, madame Hortência.
Ela segurava quatro barbantes, e arrastava os quatro couraçados arvorando as bandeiras inglesa, russa, francesa e italiana. Em cada canto do quadro pendia uma barba, uma loura, uma castanha, uma grisalha e uma negra.
A velha cantora entendeu logo.
Eu! — disse ela apontando com orgulho a sereia. Suspirou. — oh! Eu antigamente era uma grande potência.
Tirou um pequeno espelho redondo que ela havia prendido em cima do leito, perto da gaiola do papagaio e colocou a obra de Zorba.
Sob a pintura espessa, suas faces empalideceram.
Enquanto isso, Zorba se havia metido na cozinha. Tinha fome.
Trouxe o prato com o leitão, colocou diante dele uma garrafa de vinho e encheu os três copos.
Vamos, para a mesa! — disse ele, batendo palmas. — vamos começar pelo principal, a barriga. Depois, querida, a gente vai descendo!
Mas o ar estava intranquilo por causa dos suspiros de nossa velha sereia. Ela tinha, também, em cada começo de ano, o seu pequeno juízo final, devia pesar sua vida de achá-la estragada. Nessa cabeça de mulher depenada, as grandes cidades, os homens, os vestidos, as garrafas de champanha, as barbas perfumadas deviam, nos dias solenes, levantar-se do túmulo de seu coração e gritar.
Não tenho fome — murmurou ela em voz baixa. — não tenho nenhuma fome, nenhuma…
Ela se ajoelhou diante do braseiro e remexeu os carvões ardentes; suas faces desbotadas refletiram as chamas. Uma mecha de seus cabelos escorregou de sua testa, balançou diante das chamas e espalhou-se pelo quarto o cheio nauseabundo de cabelos chamuscados.
Não quero comer... — murmurou ela ainda, vendo que não lhe prestávamos atenção.
Zorba fechou a mão nervosamente. Ficou por instantes indecisos. Ajoelhou-se e segurando os joelhos da velha sereia:
Se você não come, minha queridinha — disse ele com uma voz lamuriosa, — é o fim do mundo. Tenha piedade, querida, e coma essa patinha do leitão.
E enfiou-lhe na boca a pata torrada e pingando a manteiga e gordura.
Tomou-a em seus braços. Levantou-a, e instalou-a gentilmente sobre sua cadeira, entre nós dois.
Coma — disse, — coma meu tesouro, para que São Basílio entre em nossa aldeia! Senão, você sabe, ele não entrará. Vai voltar para sua pátria, em Cesareia. Levará de volta o papel e o tinteiro, os bolos dos reis, os presentes de ano novo, os brinquedos das crianças, até esse porquinho! Vamos, minha franguinha, abre sua boquinha e coma!
Estendeu dois dedos e fez-lhe cócegas sobre o braço. A velha sereia soluçou, enrugou os olhinhos avermelhados e se pôs a mastigar lentamente a pata torrada...
Nesse momento, dois gatos apaixonados se puseram a miar sobre o telhado, em cima de nossas cabeças. Miavam com um ódio indescritível, suas vozes subiam, desciam, cheias de ameaças.
Bruscamente, nós os ouvimos rolar, emaranhados, e se entredevorar.
Miau, miau... — fez Zorba piscando o olho para a velha sereia.
Ela sorriu e apertou sua mão disfarçadamente sobre a mesa.
Sua garganta se abriu, e ela começou a comer de bom humor.
O sol desceu, entrou pela pequena janela e se colocou sobre os pés da nossa boa senhora. A garrafa estava vazia. Acariciando seus bigodes eriçados de gato-do-mato, Zorba se aproximou de Madame Hortência. Esta, engrouvinhada, a cabeça metida no pescoço, sentia, sobre si, tremendo, o hálito quente e avinhado.
O que é ainda esse mistério, patrão? — fez Zorba se voltando.
Tudo anda ao contrário comigo. Quando eu era criança, parecia que eu tinha ares de um pequeno velho; era pesadote, não falava muito, tinha uma voz grossa como de homem. Dizia-se que eu me parecia com meu avô! Mas, quanto mais envelheço, mais fico impulsivo. Com vinte anos, fiz pequenas loucuras, mas não muitas, essa que se costuma fazer com essa idade. Com quarenta anos, me senti em plena juventude e comecei a fazer as grandes loucuras. E agora, com sessenta anos — sessenta e cinco, mas isso fica entre nós — e agora que entrei nos setenta, palavra de honra, o mundo ficou muito pequeno para mim. Como você explica isso, patrão?
Ergue o copo, e virando gravemente para a senhora:
À sua saúde, minha Bubulina — disse ele em tom solene. — espero que esse ano lhe nasçam dentes, belas sobrancelhas afiladas e que sua pele se refaça e fique fresca como a de um pêssego! Então, você não precisará mais dessa história de fitinhas! Eu lhe desejo uma outra revolução em Creta, e que voltem as quatro grandes potências, Bubulina querida, com sua esquadra, e que cada esquadra tenha o seu almirante, e que cada almirante a sua barba frisada e perfumada.
E você, minha sereia, você surgirá das ondas ainda uma vez cantando sua doce canção.
Dito isso, pousou sua grande pata sobre os seios caídos e flácidos da boa senhora.
De novo Zorba estava inflamado, sua voz se refez rouca de desejo. Pus-me a rir. Uma vez, no cinema, vi um paxá turco se esbaldando num cabaré de Paris. Tinha nos joelhos uma mocinha loura, e quando se animava, a borla de seu fez se punha a levantar lentamente, se imobilizava na horizontal, e tomando impulso de repente se erguia reta no ar.
Por que este rindo, patrão? — perguntou Zorba.
Mas a boa mulher guardava ainda as palavras de Zorba.
Será possível, meu Zorba? A juventude vai embora... e não volta.
Zorba se aproximou dela e as duas cadeiras se tocaram.
Ouça minha beleza — disse ele tentando desabotoar o terceiro botão — decisivo este — da blusa de Madame Hortência. — ouça o grande presente que vou lhe arranjar: há agora um médico que faz milagres. Ele dá um medicamento, gotas ou pó, não sei, e a gente tem de novo vinte anos, vinte e cinco no máximo. Não chore meu amor, vou mandar busca-lo na Europa...
Nossa velha sereia sobressaltou-lhe. A pele brilhante, luzidia e avermelhada de seu crânio brilhou entre os cabelos esparsos. Atirou os braços gordinhos em volta do pescoço de Zorba.
Se forem gotas, meu querido — disse ela, se esfregando em Zorba como uma gata, — se forem gotas, você me trará uma jarra. Se for pó...
Um saco grande — disse Zorba que desabotoara o terceiro botão.
Os gatos, que se haviam calado por um momento, recomeçaram a miar. Uma das vozes se lamentava e suplicava, a outra se irritava ameaçadora…
Nossa boa mulher bocejou e seus olhos se fizeram langorosos.
Você está escutando esses bichos imundos? Eles não tem vergonha... — sussurrou ela, sentando-se nos joelhos de Zorba.
Virou-se contra ele e suspirou. Havia bebido um pouco, e seus olhos se toldaram.
Em que pensas, minha gata? — disse Zorba segurando-lhe os seios com as duas mãos.
Alexandria... — murmurou choramingando a sereia Andarilha. — Alexandria, Beirute... Constantinopla... os turcos, os árabes, os sorvetes, as sandálias douradas, os fezes vermelhos...
Suspirou de novo.
Quando Alybei ficava de noite comigo... que bigodes, que sobrancelhas, que braços!... ele chamava os tocadores de tamborim e de flauta, jogava-lhes dinheiro pela janela e eles tocavam em meu pátio até a madrugada. E as vizinhas torciam-se de inveja. Diziam “Alybei está ainda essa noite com a senhora...”
Depois, em Constantinopla, Suleiman o paxá não me deixava sair para passear na sexta-feira. Ele tinha medo de que o sultão, indo para a mesquita, me visse e, encantando por minha beleza, me mandasse raptar. De manhã, quando saía de minha casa, ele colocava três negros na porta para que nenhum macho se aproximasse... ah! Meu suleimanzinho!
Ela tirou de seu colo um grande lenço de quadrados coloridos e o mordeu, soprando como uma tartaruga marinha.
Zorba se desvencilhou dela, depositou-a sobre a cadeira vizinha e se levantou aborrecido. Deu duas ou três voltas em torno da sala, soprando também; o quarto pareceu-lhe subitamente muito pequeno, pegou seu bastão e lançou-se para o pátio; apanhou uma escada e apoiou-se na parede e o vi subir de dois em dois degraus, com ar furioso.
Em quem você vai bater, Zorba? — gritei eu. — em Suleiman paxá?
Na porcaria desses gatos — berrou ele. — Não querem nos deixar em paz!
E de um pulo saltou para o telhado.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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