Em seu discurso de 1838 no Young Men’s
Lyceum, o jovem Abraham Lincoln demonstrou preocupação com o fato
de que, à medida que as lembranças da Revolução ficavam para
trás, a liberdade da nação era ameaçada por um desprezo pelas
instituições governamentais, que protegiam as liberdades civis e
religiosas deixadas como legado pelos Fundadores. Para preservar o
Estado de direito e evitar a ascensão de um pretenso tirano que
poderia “surgir entre nós”, seria necessária uma razão sóbria
— “uma razão fria, calculada, imparcial”. Para permanecer
“livre até o último dos homens”, ele incitou o povo
norte-americano a abraçar a razão, junto com uma “moralidade
sólida e, em particular, uma reverência pela constituição e pelas
leis”.
Como Lincoln sabia, os fundadores dos
Estados Unidos haviam baseado sua jovem república nos princípios
iluministas da razão, da liberdade, do progresso e da tolerância
religiosa. E a estrutura constitucional que haviam arquitetado se
fundamentava num sistema racional de separação dos poderes para
evitar a possibilidade, nas palavras de Alexander Hamilton, do
surgimento de “um homem sem princípios em sua vida privada”, “de
temperamento insolente”, que talvez “viesse montado no cavalinho
de pau da popularidade” e “exaltasse e se alinhasse com o
disparate propagado pelos extremistas de sua era”, de modo a
constranger o governo, “lançando ainda mais coisas nessa confusão
para dominar a tempestade e direcionar o furacão”.
Esse sistema estava longe de ser
perfeito, mas resistiu por mais de dois séculos graças à sua
resiliência e à capacidade de acomodar mudanças essenciais.
Líderes como Lincoln, Martin Luther King Jr. e Barack Obama viam os
Estados Unidos como uma obra em progresso — um país em processo de
autoaperfeiçoamento. E eles tentaram acelerar essa obra, cientes,
nas palavras do Dr. King, de que “o progresso não é automático
nem inevitável”, mas algo que necessita de esforços e dedicação
contínuos. O que fora conquistado desde a Guerra Civil e o movimento
dos direitos civis eram lembretes do trabalho que ainda havia por
fazer, mas também um tributo à crença do presidente Obama de que
os norte-americanos “podem se reinventar constantemente para se
adaptar a sonhos cada vez maiores”, e à crença iluminista no que
George Washington chamou de “o grande experimento confiado às mãos
do povo norte-americano”.
Junto a essa visão otimista dos Estados
Unidos como uma nação que poderia se tornar uma reluzente “cidade
edificada sobre um monte” também existe uma contranarrativa
irracional e sombria na história do país, que se reafirmou com uma
vingança — a tal ponto que a razão não apenas está sendo
minada, mas ao que parece foi simplesmente defenestrada junto com os
fatos, com o debate bem informado e com a criação de políticas
deliberativas. A ciência está sendo atacada, bem como a autoridade
de especialistas de todos os campos — seja em política
internacional, segurança nacional, economia ou educação.
Philip Roth chamou essa contranarrativa
de “selvageria nativa americana”, e o historiador Richard
Hofstadter notoriamente a descreveu como “estilo paranoide” —
uma visão alimentada por “fervorosos exageros, desconfiança e
fantasia conspiratória” e focada na percepção de ameaças a “uma
nação, uma cultura, um modo de vida”. O ensaio de 1964 de
Hofstadter foi inspirado pela campanha de Barry Goldwater e pelos
movimentos de direita ao seu redor, assim como seu livro de 1963,
Anti-Intellectualism in American Life, concebido em resposta à
notória caça às bruxas promovida pelo senador Joseph McCarthy e
também ao panorama político e social mais amplo dos anos 1950.
Goldwater perdeu a eleição
presidencial, e o macarthismo se autodestruiu depois que um advogado
do Exército norte-americano, Joseph Welch, teve a coragem de
enfrentar McCarthy: “Afinal de contas, o senhor não tem nenhum
senso de decência?”, perguntou Welch. “Não lhe sobrou nenhum
senso de decência?”
O malicioso McCarthy, que havia acusado
pessoas de deslealdade por todos os cantos de Washington (“o
Departamento de Estado abriga um ninho de comunistas e simpatizantes
dos comunistas”, avisou ao presidente Truman em 1950), foi
admoestado pelo senado em 1954. E, com o lançamento do Sputnik pelos
soviéticos, em 1957, o alarmante movimento antirracionalista começou
a recuar, dando lugar a uma corrida espacial e a uma série de
esforços orquestrados para aprimorar os programas científicos dos
Estados Unidos.
Hofstadter notou que o estilo paranoico
tende a se manifestar em “ondas episódicas”. O movimento
anticatólico e anti-imigrante Know Nothing atingiu seu auge em 1855,
quando 43 membros do Congresso admitiram abertamente defender suas
próprias ideias. A força do movimento começou a se dissipar
rapidamente no ano seguinte, depois que o partido se fragmentou em
várias dissidências. No entanto, a intolerância que ele
incorporava permaneceu, como um vírus, incubado no sistema político
esperando para emergir outra vez.
Hofstadter argumenta que a direita
moderna tende a ser mobilizada por um sentimento de ressentimento e
desapropriação: “Os Estados Unidos, em grande parte, foram
tomados dessas pessoas”, escreveu ele, e elas podem acabar achando
que “não têm acesso à barganha política ou à tomada de
decisões”.
No caso dos Estados Unidos dos millenials
(e de grande parte da Europa Ocidental também), esse ressentimento é
exacerbado pelas mudanças demográficas e pelos costumes sociais que
fizeram alguns membros da classe operária branca se sentirem cada
vez mais marginalizados; por conta de desigualdades de renda cada vez
maiores, aceleradas pela crise financeira de 2008; e por forças como
a globalização e a tecnologia, que estão acabando com os trabalhos
de manufatura e injetando uma nova dose de incerteza e angústia na
vida cotidiana.
Trump e outros líderes nacionalistas e
anti-imigrantes da direita europeia, como Marine Le Pen na França,
Geert Wilders na Holanda e Matteo Salvini na Itália, inflamavam
esses sentimentos de medo, ódio e privação de direitos, oferecendo
bodes expiatórios em vez de soluções; enquanto liberais e
conservadores, preocupados com a ascensão do nativismo e de agendas
políticas preconceituosas, alertaram para o fato de que as
instituições democráticas estavam cada vez mais ameaçadas. “A
segunda vinda”, poema que Yeats escreveu em 1919 em meio aos
escombros da Primeira Guerra Mundial, passou por um tremendo revival
em 2016 — citado mais vezes em matérias na imprensa durante o
primeiro semestre do que ao longo das últimas três décadas, uma
vez que articulistas políticos evocaram seus famosos versos: “Tudo
se parte, o centro não sustenta./ Mera anarquia avança sobre o
mundo.”
O ataque à razão e à verdade atingiu
seu ápice nos Estados Unidos durante o primeiro ano de mandato do
presidente Trump, mas vinha sendo incubado havia anos pela extrema
direita. Durante a campanha de 2016, opositores de Clinton que
fabricavam acusações delirantes sobre a morte de Vince Foster na
década de 1990 se uniram a membros paranoicos do Tea Party que
afirmaram que os ambientalistas queriam controlar a temperatura das
casas e as cores dos carros. A eles se juntaram blogueiros do
Breitbart e trolls da direita alternativa. Quando Trump ganhou
a indicação dos republicanos para concorrer à presidência, as
ideias extremistas dos seus apoiadores mais radicais — sua
intolerância racial e religiosa, seu ódio pelo governo anterior e
sua aceitação das teorias da conspiração e das notícias falsas —
chegaram ao grande público.
De acordo com um levantamento feito em
2017 pelo The Washington Post, 47% dos republicanos
erroneamente acreditam que Trump venceu no voto popular; 68%
acreditam que milhões de imigrantes ilegais votaram em 2016; e mais
da metade dos republicanos afirmaram não ver problemas em adiar as
eleições presidenciais de 2020 até que se resolvam problemas como
a votação dos imigrantes ilegais.19 Outro estudo, conduzido por
cientistas políticos na Universidade de Chicago, demonstrou que 25%
dos norte-americanos acreditam que a quebra da bolsa em 2008 foi
secretamente orquestrada por um pequeno grupo de banqueiros; 19%
acreditam que o governo tem algum envolvimento com os ataques
terroristas do 11 de Setembro; e 11% acreditaram numa teoria que os
próprios pesquisadores inventaram, que dizia que lâmpadas
fluorescentes faziam parte de um plano do governo para tornar as
pessoas mais passivas e fáceis de serem controladas.
Trump, que lançou sua carreira política
promovendo descaradamente o nascimentismo (birtherism) e já
falou positivamente sobre o radialista e teórico da conspiração
Alex Jones, preside uma administração que se tornou, em seu
primeiro ano, a própria personificação dos princípios
anti-iluministas, repudiando os princípios do racionalismo, da
tolerância e do empirismo tanto nas políticas quanto no modus
operandi — um reflexo do estilo impulsivo e errático de seu
comandante em chefe em tomar decisões, baseado não em conhecimento,
mas no instinto, em caprichos e em ideias preconcebidas (e
frequentemente delirantes) a respeito do funcionamento do mundo.
Trump não fez nenhum esforço para
acabar com sua ignorância a respeito das políticas interna e
externa quando se mudou para a Casa Branca. Seu ex-estrategista
chefe, Stephen Bannon, disse que o presidente só “lê o que
reafirma suas crenças” e sempre negou, minimizou ou desconsiderou
qualquer informação a respeito da interferência russa nas eleições
de 2016. Como menções a esse assunto costumavam provocar a ira do
presidente e podiam atrapalhar o andamento dos relatórios diários
de inteligência, funcionários do governo contaram em entrevista ao
The Washington Post que, às vezes, incluíam esse tipo de
material somente na versão impressa do PDB (President’s Daily
Brief, o relatório diário do presidente), que todos sabiam que
ele raramente lia.
Em vez disso, ao que parece o presidente
prefere obter suas informações na Fox News, sobretudo no programa
matinal bajulador Fox & Friends e em veículos como o
Breitbart News e o National Enquirer. De acordo com relatos, ele
costuma passar até oito horas por dia vendo TV — um hábito que
deve fazer com que muitos leitores se recordem de Chauncey Gardiner,
o jardineiro viciado em TV que virou celebridade e estrela política
em ascensão no romance O Videota, de Jerzy Kosiński,
publicado em 1970. A Vice News também relatou que Trump recebe, duas
vezes por dia, uma pasta contendo um clipping elogioso, incluindo
“tuítes de admiradores, trechos de entrevistas bajuladoras na TV,
matérias jornalísticas repletas de elogios e, de vez em quando,
apenas fotos de Trump na TV parecendo poderoso”.
Esse tipo de detalhe absurdo é mais
preocupante do que apenas cômico, porque não estamos falando de um
mero episódio de Além da imaginação sobre um lunático
morando numa enorme casa branca em Washington. A propensão de Trump
para o caos não só não foi contida pelos mais próximos a ele,
como contaminou toda a sua administração. Ele garante ser “o
único que importa”28 quando o assunto é a criação de políticas
e, dado o seu desprezo pelo conhecimento institucional, ignora com
frequência os conselhos de membros do gabinete e de agências, isso
quando não os exclui por completo da discussão.
* * *
Ironicamente, a disfunção que esses
hábitos alimentam tende a confirmar a desconfiança que seus
apoiadores têm em relação a Washington (um dos principais motivos
pelos quais votaram em Trump, em primeiro lugar), criando uma espécie
de profecia autorrealizável que, em contrapartida, produz mais
cinismo e uma relutância em participar do processo político. Um
número crescente de eleitores percebe um descompasso gritante entre
suas crenças e as políticas do governo. Políticas de bom senso,
como a obrigatoriedade de um atestado de antecedentes criminais para
quem quiser comprar uma arma de fogo, apoiada por mais de nove em
cada dez norte-americanos, têm encontrado entraves no Congresso, que
está repleto de integrantes que dependem de doações da Associação
Nacional de Rifles, a NRA. Numa pesquisa feita em 2018, 87% dos
norte-americanos disseram ser favoráveis à permanência dos
dreamers nos Estados Unidos (os jovens imigrantes que chegaram ao
país ainda crianças). Mesmo assim, o Daca, que concede autorização
temporária de estadia e trabalho aos dreamers, se transformou
num verdadeiro jogo político. E 83% dos norte-americanos (incluindo
75% dos republicanos) afirmaram ser favoráveis à neutralidade da
rede — que foi derrubada pela FCC (Federal Communication
Commission, a Comissão Federal de Comunicações) de Trump.
Michiko Kakutani, in A morte da verdade
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