sábado, 9 de outubro de 2021

Meu avô e minha avó

Meu avô se chamava Evaristo, capitão Evaristo. Suas origens são obscuras. A pesquisa genealógica esbarrou num tal de João de Deus que vivia lá pelas bandas de Tiradentes. Esse João de Deus era homem religioso e bom, prova disso sendo o fato de que ele criou um menino, filho bastardo, não se sabe de quem. Outros afirmam o contrário, que João de Deus era na verdade o pai do dito menino, possivelmente por uma relação pecaminosa com alguma escrava negra. Todos sabiam que as negras eram mais quentes. Não é descabido imaginar que uma negra de entranhas quentes tenha sido a inspiração original para o nome de maria-fumaça.
Sexo com a excelentíssima esposa era coisa rara, precedido de pedidos de licença e desculpas, só para cumprir o mandamento eclesial de gerar filhos para completar as populações dos céus e dos infernos. Não sei se se usavam os lençóis com um buraco bordado no meio. É possível. Esposas excelentíssimas não gozavam. Cada coito era uma humilhação. Será daí que surgiu a palavra “coitado”? Coito com escrava não era pecado. Está justificado nas Sagradas Escrituras. Sara, a mulher de Abraão, ordenou-lhe que dormisse com sua escrava Hagar. O que ele fez obedientemente. Segundo santo Agostinho, esse coito com a escrava foi totalmente santificado porque Abraão o fez por dever, sem prazer. Se esse foi o caso, então, o sangue azul da família estava misturado com sangue negro. Não bastasse que a mãe fosse da “prateleira de baixo”. Tinha de ser uma negra.
Da descendência dessa criança bastarda de sangue negro nasceria o menino Evaristo Alves de Azevedo, filho do capitão Silvestre Alves de Azevedo.
Que era uma família católica não há dúvidas. O nome Silvestre dado ao meu bisavó era o nome do santo do dia do seu nascimento, 31 de dezembro. E é sabido que o capitão Silvestre enviou o seu filho Evaristo para o seminário Caraça, onde viveu interno por anos. Nas minhas fuçanças nos baús do Quarto do Mistério encontrei uma carta assinada pelo seminarista Evaristo Alves de Azevedo em que pedia dez tostões ao pai para comprar uma batina nova. Felizmente ele desistiu da sua vocação sacerdotal. Se não o tivesse feito, se tivesse vivido como um casto sacerdote, é possível que muitas almas tivessem sido salvas do fogo do inferno pelos sacramentos que ele teria administrado. Mas eu não teria nascido e não estaria, neste momento, a escrever estas memórias.
A família Alves de Azevedo desenvolveu uma inteligência comercial que a fez prosperar nos negócios — a loja do capitão Evaristo era a mais bem sortida das redondezas —, dando-lhe a ousadia que o levou a empreendimentos progressistas como foi o caso da navegação do rio Grande a que já nos referimos.
Pelos indícios que possuo, concluo que a inteligência da família do doutor Jorge, pai de minha avó, tomou outros caminhos. O doutor Jorge não era católico. Ele considerava a Igreja uma fonte de superstições e de atraso. Era kardecista e respirava os ideais evolucionistas darwinianos e republicanos do positivismo. Há testemunhos duvidosos que afirmam que ele, nos anos em que viveu em Portugal a estudar, teria passado algum tempo na prisão em virtude de ter-se metido em demonstrações políticas antimonarquistas.
Tinha relações privilegiadas com a política. Seu irmão, doutor Quintiliano, era motivo de orgulho da família, por ter sido governador da província de Minas Gerais. Uma das obras mais importantes da sua administração foi a construção de um magnífico chafariz em Ouro Preto, que foi inaugurado com a presença do imperador dom Pedro II. Se não me engano, o chafariz ainda está lá, vertendo água.
O doutor Jorge, meu bisavô, amava as árvores. Herdei isso dele. Colocou a sua casa no meio de um imenso parque cheio de árvores que ele mesmo plantou. Acho que ele queria viver isolado — suas ideias eram muito diferentes, não havia com quem conversar.
Por vezes penso que, numa escala evolutiva, as árvores são superiores a nós. Não sei o que o kardecismo do doutor Jorge teria a dizer a esse respeito. Elas permanecem tranquilas de dia e de noite, sob o sol ou sob a chuva, no frio e no calor. São tranquilas até para morrer. Alberto Caeiro viu nelas símbolos da felicidade e nos aconselhou a ser como elas: “Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando acabemos...”. Contemplar uma árvore é uma oração tranquilizante.
São felizes no que são. Uma paineira não quer se transformar em laranjeira! Se quisesse, seria uma árvore neurótica. São felizes onde estão. Não pensam em viajar de férias. Só viaja de férias quem está infeliz onde está.
O doutor Jorge plantou muitas árvores: palmeiras, tipuanas, jatobás, ipês, eritrinas... Mas, dentre todas as árvores que plantou, as mais amadas foram as magnólias, cor de carne, pudicas, que, à semelhança de Eva no Paraíso, escondem sua cor de carne atrás de folhas. Inutilmente, porque da sua carne sai um perfume embriagante.
Plantou também uma mata de jabuticabeiras, nem sei quantas... Primeiro vêm as flores brancas perfumadas, do rés do chão até a ponta dos galhos. Depois vêm as abelhas. Finalmente estufam-se do tronco, dos galhos, as frutas negras, túrgidas de um leite doce que explode com um estalo dentro da boca quando mordidas. Depois da chuva as jabuticabeiras de bolinhas pretas faíscam ao sol. Jabuticaba é Minas Gerais...
Afirmam os kardecistas que o seu filho doutor Augusto Silva, médico, continua a realizar até hoje o seu ministério de curar. Foi o que me disse um motorista de táxi, em São Paulo. Gosto de conversar com motoristas de táxi. O começo é sempre o mesmo. “Você nasceu aqui?” “Não, nasci em Macuco, lugarejo de Minas, perto da represa de Itutinga, tão pequeno que ninguém conhece.” “Mas eu conheço”, respondi. “Meu irmão foi engenheiro na construção da barragem. E minha família é de Lavras, bem perto de Macuco.” “Lavras?”, ele perguntou surpreso. Aí ele explicou com solenidade: “Lavras é a cidade de um espírito de luz muito poderoso. Era médico enquanto vivo, o doutor Augusto Silva...” . Aí eu arrematei para aumentar o seu espanto: “O doutor Augusto Silva era meu tio...” .
A filha do doutor Jorge se chamava Delminda. O normal era que as moças fossem educadas para o casamento e para isso aprendessem as prendas domésticas. Se fossem de famílias abastadas, às prendas domésticas se acrescentavam as artes, o piano, a cítara, o bandolim, a pintura. Quando se recebiam visitas e nos saraus musicais, os pais se orgulhavam de que as filhas tocassem piano. Pois a Delminda, ao lado das prendas domésticas e artes que lhe devem ter sido ensinadas, tinha interesses curiosos para uma jovem de uma cidade do interior. Gostava das estrelas... Relata-se que era costume seu levantar-se durante as noites para contemplar o céu. Gostava também das tempestades. Em dias de chuva forte, raios e trovões, quando os mais valentes ficavam com medo e rezavam a santa Bárbara, a Delminda ia para a janela da sala admirar a chuva que caía e os relâmpagos e seus trovões.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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