segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A fundação da sociedade civil

O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”. Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos na sua ordem mais natural.
O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua conservação. As produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto o levou a fazer uso delas. A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse pendor cego, desprovido de todo sentimento de coração, não produzia senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais representava para a mãe logo que podia passar sem ela.
Tal foi a condição do homem ao nascer; tal foi a vida de um animal, limitada primeiro às puras sensações e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em lhe arrancar alguma coisa. Mas, logo, surgiram dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que também procuravam nutrir-se, a ferocidade dos que queriam a sua própria vida, tudo o obrigou a aplicar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos das árvores e as pedras, em breve estavam nas suas mãos. Aprendeu a vencer os obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência aos próprios homens, ou a se compensar do que era preciso ceder ao mais forte.
A medida que o gênero humano se estendia, as penas se multiplicavam com os homens. A diferença dos terrenos, dos climas, das estações, forçou-os a estabelecê-la na maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria. Ao longo do mar e dos rios, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, fizeram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nos países frios, cobriram-se de peles de animais por eles mortos. O trovão, uma visão, ou qualquer feliz acaso, lhes fez conhecer o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno: aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo, e enfim a preparar nele as carnes, que antes devoravam cruas.
Essa aplicação reiterada de seres diversos a si mesmos e de uns aos outros teve, naturalmente, de engendrar, no espírito do homem, as percepções de certas relações. Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte, fraco, depressa, devagar, medroso, ousado, e outras ideias semelhantes, comparadas quando necessário, e quase sem nisso pensar, produziram nele, finalmente, uma espécie de reflexão, ou antes, uma prudência maquinal que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança. As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento aumentaram a sua superioridade sobre os outros animais, fazendo-lhe conhecê-la. Exercitou-se em lhes preparar armadilhas, logrou-os de mil maneiras; e, embora muitos o ultrapassassem em força no combate, ou em ligeireza na corrida, daqueles que o podiam servir ou prejudicar, tornou-se com o tempo o senhor de uns e o flagelo de outros. E, assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.
Embora os seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós, e embora não tivesse mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas observações. As semelhanças que o tempo lhe pode fazer perceber entre eles, sua fêmea é ele mesmo, lhe fizeram julgar das que não percebia; e, vendo que todos se conduziam como teria feito ele próprio em circunstâncias semelhantes, concluiu que a sua maneira de pensar e de sentir era inteiramente conforme à sua. E, essa importante verdade, bem estabelecida em seu espírito, lhe fez seguir, por um pressentimento tão seguro e mais pronto do que a dialética, as melhores regras de conduta que, para sua vantagem e segurança, lhe convinha observar para com eles.
Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se em estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar com a assistência dos seus semelhantes, e as mais raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer desconfiar deles. No primeiro caso, unia-se a eles em rebanho, ou quando muito por uma espécie de associação livre que não obrigava a ninguém e que só durava enquanto havia a necessidade passageira que a havia formado. No segundo, cada qual procurava tirar suas vantagens, ou pela força aberta, se acreditava poder, ou pela astúcia e sutileza, se se sentia mais fraco.
Eis como os homens puderam, insensivelmente, adquirir uma ideia grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de os cumprir, mas somente na medida em que podia exigi-lo o interesse presente e sensível; porque a previdência nada era para eles; e, longe de se ocuparem com um porvir afastado, nem mesmo pensavam no dia seguinte. Se se tratava de pegar um veado, cada qual sentia bem que, para isso, devia ficar no seu posto; mas, se uma lebre passava ao alcance de algum, é preciso não duvidar de que a perseguia sem escrúpulos e, uma vez alcançada a sua presa, não lhe importava que faltasse a dos companheiros.
É fácil compreender que tal comércio não exigia uma linguagem mais refinada do que a das gralhas ou a dos macacos que se reúnem em bandos mais ou menos semelhantes. Gritos inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos deviam compor, durante muito tempo, a língua universal; acrescentem-se a isso, em cada região, alguns sons articulados e convencionais, cuja instituição, como já disse, não é muito fácil explicar, e temos línguas particulares, mas grosseiras, imperfeitas e mais ou menos como as que ainda hoje têm diversas nações selvagens.
Percorri, como um traço, multidões de séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela abundância das coisas que tenho que dizer e pelo progresso quase insensível dos começos; porque, quanto mais lentos em se suceder eram os acontecimentos, tanto mais estão prontos para serem descritos.
Esses primeiros progressos colocaram, finalmente, o homem ao alcance de os fazer mais rápidos.[...]

Jean Jacques Rousseau, in Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

Nenhum comentário:

Postar um comentário