Aquele foi o último enterro realizado na
Viração por muito tempo. Não que não houvesse morrido mais gente,
mas porque a fazenda foi vendida meses depois da morte de meu pai. Os
herdeiros da família Peixoto envelheceram, e os seus filhos e netos
não queriam continuar com a propriedade Água Negra. Os mais velhos
nos conheciam, mas os mais novos nem sabiam quem éramos, embora não
tivessem dúvida de que se tratava de um problema aos seus negócios.
Foi com as casas de barro e nossos corpos como mobília que venderam
a terra a um casal com dois filhos. Acostumados que estávamos à
longa posse da família Peixoto, fomos surpreendidos pela mudança e
ficamos sem saber o que aconteceria a partir de então. Os mais
ingênuos achavam que tudo permaneceria da mesma maneira. Os mais
desconfiados temiam o que estava por vir, quiçá o despejo. Sabíamos
que a fazenda existia, pelo menos, desde a chegada de Damião, o
pioneiro dos trabalhadores, durante a seca de 1932. A família
Peixoto havia herdado terras das sesmarias. Essas coisas nem Deus
sabe explicar como aconteceram, mas Severo diz de uma forma que o
povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos caminhos para a
roça. Depois o povo fica se perguntando, conversando entre si, e vão
recuperando as histórias das famílias antes da chegada. Eu tentava
me concentrar depois, para aprender sobre o que Severo contava. Que
chegou um branco colonizador e recebeu a dádiva do reino. Chegou
outro homem branco com nome e sobrenome e foram dividindo tudo entre
eles. Os índios foram sendo afastados, mortos, ou obrigados a
trabalhar para esses donos da terra. Depois chegaram os negros, de
muito longe, para trabalhar no lugar dos índios. Nosso povo, que não
sabia o caminho de volta para sua terra, foi ficando. Quando as
fazendas foram deixando de produzir porque os donos já estavam
velhos e os filhos já não se interessavam pelo trabalho de roça,
porque ganhavam muito mais dinheiro como doutores na cidade, e nos
procuravam cercando terras pelas extremidades da fazenda, dissemos
que éramos índios. Porque sabíamos que, mesmo que não fosse
respeitada, havia lei que proibia tirar terra de índio. E também
porque eles se misturaram conosco, indo e voltando de seu canto,
perdidos de suas aldeias.
Muito antes de nós, é o que dizem,
chegou para cá muita gente, vindo com a notícia de que haviam sido
encontradas minas de diamantes. Dizem até que quem encontrou o
diamante foi um de nossos antepassados. Contam que roubaram dele as
pedras sob sua posse, que foram garimpadas no rio Serrano. Que para
tirar as pedras de suas mãos chegaram mesmo a acusá-lo de matar um
viajante das Minas Gerais. Para não ser morto, teve que contar onde
havia encontrado as pedras. Outros contam que ele apenas carregava os
diamantes para serem vendidos, e que as pedras tinham sido
encontradas pelos escravos de um tal senhor do Prado. Outros dizem
que o primeiro diamante foi encontrado por um homem das Gerais. O que
sabemos é que essa notícia trouxe mais escravos, trabalhadores
livres, consulado de país estrangeiro para o interior e companhia de
mineradores, tudo para retirar o diamante das serras. Sabe-se também
que muito sangue foi derramado, muitos homens sucumbiram ao
chamamento, à loucura e ao feitiço da pedra. Muitos endoideceram na
sanha para encontrar o brilho. Muitos pereceram encantados e outros
tantos foram mortos. Esta terra viveu em guerra de coronéis por
muitos e muitos anos. Para trabalhar no garimpo vieram muitos homens
escravos das vizinhanças da capital, dos engenhos que já não
tinham mais a importância de antes, e das minas de ouro das Gerais.
Dizem que até mesmo nasceu por aqui, filho de um dos trabalhadores
das minas de diamante, o neto de um rei de Oyó da África, o neto do
último rei a manter o império unido, antes de cair em desgraça.
Durante muitos anos, nascemos e vivemos à
sombra da corrida do garimpo. Seja nas brincadeiras de criança,
quando éramos ensinados a identificar qualquer gema que pudesse se
assemelhar à pedra da cobiça, seja nas histórias dos coronéis que
dominavam a região e da guerra que embrenharam pelas serras onde
estava o diamante. Contavam de como o trânsito de pessoas às vezes
era interrompido de um lugar a outro para que não fossem mortos nas
emboscadas. De como as fazendas em que morávamos e nossas origens
tinham a marca dessa trama de vida e morte que se instalou por
décadas na Chapada Velha. Se fôssemos moradores da fazenda “tal” estávamos livres para transitar de um lugar a outro. Se nosso senhor
fosse desafeto de “tal” coronel, os que ali viviam também corriam
risco de se tornar vítimas da violência. Era o que nos contavam. O
medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre.
Era o medo de quem foi arrancado do seu
chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos
castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela
gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de
que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu
cheiro, do seu cabelo, de sua cor. Que não gostassem de seus filhos,
das cantigas, da nossa irmandade. Aonde quer que fôssemos,
encontrávamos um parente, nunca estávamos sós. Quando não éramos
parentes, nos fazíamos parentes. Foi a nossa valência poder se
adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da
vigilância dos que queriam nos enfraquecer. Por isso espalhavam o
medo. Eu fui apanhando cada palavra da fala de Severo, das muitas
vezes que o vi contar, para guardar em meu pensamento.
Foi assim que ele nos disse, e o povo
ajudava contando o que conhecia das histórias de vida também: que,
em dado momento, o diamante já não atraía tanta gente e só
restaram as terras de Água Negra, conhecidas pela grande quantidade
de água e pela várzea, que tudo dá. Era uma porção de mundo
entre dois rios que corriam à sua volta por quase todos os lados,
formando uma ilha no coração da Chapada Velha. Para cá, em quase
todos os anos de seca de que se tem notícia, peregrinaram muitos
trabalhadores buscando morada. Eram trazidos pelo gerente da fazenda,
ou pelos que ali já estavam, que pediam por irmãos e compadres.
Outros chegaram sobre as forças das próprias pernas para se juntar
aos demais, com a autorização dos donos da terra.
Durante muitos anos, a fazenda foi uma
bênção de água e fartura no sertão. Agora o novo dono, que
construiu uma casa bonita e vistosa para morar na beira dos marimbus,
mandou um novo gerente, depois de Sutério se aposentar, dizer que
não poderíamos mais sepultar ninguém na Viração. Que era crime
contra as matas. Contra a natureza. Que o cemitério estava próximo
ao leito do rio. Que na cidade tinha cemitério e que a prefeitura
garantia o transporte do morto para a cidade.
Os mais jovens não viram muita diferença
em enterrar os mortos na cidade ou na Viração. Mas para os mais
velhos aquela interdição era uma ofensa. A Viração existia há
mais de duzentos anos, era o que contavam. As mulheres diziam em suas
conversas que só saíam de suas casas, só se recolheriam de suas
vidas, para a Viração. Que não haveria conversa nem interdito, que
não abriam mão de ser sepultadas naquele chão. Não abdicariam do
destino de ser enterradas ao lado de seus parentes e compadres.
Queriam estar à volta de compadre Zeca, assentado bem no meio
daquele quadrado de terra seca, com metade do terreno cercado de um
muro de um metro, enquanto a outra metade estava cercada da caatinga.
“Daqui só saio para a Viração”, foi o que mais ouvimos
naqueles dias que anunciaram o interdito.
Por sorte, ninguém morreu naquele
primeiro ano. Mas também ninguém se tranquilizou com o que estava
para vir. Aquela mensagem dizia muito mais sobre nossas vidas do que
sobre a morte em si. Se não pudéssemos deitar nossos mortos na
Viração era porque, em breve, também
não poderíamos estar sobre a mesma terra.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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