Se soubesse que tudo que se passa em meus
pensamentos, essa procissão de lembranças enquanto meu cabelo vai
se tornando branco, serviria de coisa valiosa para quem quer que
fosse, teria me empenhado em escrever da melhor forma que pudesse.
Teria comprado cadernos com o dinheiro das coisas que vendia na
feira, e os teria enchido das palavras que não me saem da cabeça.
Teria deixado a curiosidade que tive ao ver a faca com cabo de marfim
se transformar na curiosidade pelo que poderia me tornar, porque de
minha boca poderiam sair muitas histórias que serviriam de motivação
para nosso povo, para nossas crianças, para que mudassem suas vidas
de servidão aos donos da terra, aos donos das casas na cidade.
Quando Bibiana já morava novamente entre
nós, passei a ler tudo o que visse em suas mãos ou nas de Severo.
Passei a sentir fome de leitura, levava livro até para a sombra do
descanso na roça. Essas histórias que encontrava nos livros e ouvia
da boca do povo vão se desenrolando em minha cabeça como um novelo
de malha de apanhar peixe. Quando sento quieta para costurar uma
roupa velha ou levanto a enxada para devolvê-la de novo ao chão,
abrindo covas, arrancando as raízes das plantas, é que esse fio,
que tem sido meu pensamento, vai se fazendo trama. Nessas horas eu,
que tomei raiva de homem, que nunca mais quis deitar ou casar com
homem, talvez deitasse de novo só para ter filhos, para ter com quem
sentar para desfiar essas histórias que não me abandonam. Talvez
lhes desse uma pilha de cadernos velhos, manchados de umidade da
chuva, ou roídos de traças, para que lessem e pudessem entender do
que somos feitos.
O enterro do meu pai aconteceu depois de
um dia de velório, quando os aflitos que tinham passado por suas
mãos para cura vieram prestar homenagem ao curador. Zeca Chapéu
Grande havia colocado sua mão sobre as cabeças dos que agora se
abaixavam e rezavam por sua alma, em reverência. Cada um tinha uma
história de loucura, de bebida, de quebranto e mau-olhado, e todas
as coisas que contavam se encontravam no enxame de sentimentos que se
abateu sobre a fazenda naquele dia. Era uma manhã morna, eu revezava
com minha mãe e irmãs na cozinha preparando chá de capim-cidreira
para acalmar o choro do povo. A casa que se desfazia, a sala onde meu
pai emprestou seu corpo para que os encantados dançassem, curassem
quem precisava, impusessem respeito e tolerância, organizassem os
vizinhos, agora abrigava os que acolheu durante sua vida. Ouvia o som
das conversas, cada um contando sua história com Zeca, cada um
lembrando porque ele faria falta à Água Negra. As mulheres mais
próximas chegavam à cozinha, perguntavam se comadre Salu precisava
de ajuda. Deixavam por ali um pacote de café pilado, outro de
açúcar, as garrafas térmicas de suas casas, e levavam a bebida
para servir na sala. Quanto mais a hora passava, chegava gente de
cada vez mais longe. Vinham de automóvel, de cavalo, de carro de
boi, a grande maioria a pé, com suas sombrinhas para proteger do
sol. “Esse sol ainda me come o juízo”, bradou dona Miúda
enquanto entrava em nossa casa, “Bença, minha comadre, que Deus
lhe conforte”.
Entre sussurros e conversas mais
acaloradas ouvi, como uma constante companhia, o zumbido das moscas.
Eu mesma espantava os insetos enquanto estava ao lado do caixão.
Aquele som de insetos e vozes misturadas sempre me vem à mente
quando me recordo daquele dia. O mesmo som que escutei no dia do
velório de Tobias. Os vizinhos e parentes se guardavam em seus
silêncios, tiravam seus chapéus e os baixavam à altura de seus
umbigos, e só de vez em quando sussurravam coisas que não conseguia
escutar.
Como se aguardasse uma boa notícia me
aproximava do caixão, juntava as flores miúdas sobre seu corpo, uma
manta alva da terra que pudesse cobri-lo. Olhava suas mãos antigas e
grossas de trabalho, como se tivesse muitas luvas de pele e de calos
as calçando. Mãos grandes e desproporcionais, quando olhava para o
braço seco como um graveto. Senti Maria Cabocla me amparar,
segurando meus braços, sem conseguir dizer palavra que pudesse me
consolar. Depois de uma madrugada em vigília, depois de coarmos
cafés e cobrirmos nossas cabeças, rumamos num cortejo para Viração,
o cemitério da fazenda, onde estavam Donana e Tobias. Onde estavam
as crianças que não vingaram no parto. Onde estavam as dores e as
lembranças de muitas famílias que nos acompanhavam. Onde estavam os
que morreram de doença e do esgotamento que advinha da labuta. Os
que morreram de feitiço ou porque Deus assim o quis, como ouvia. A
cova estava pronta, havia um monte de terra acumulada em sua borda
para depois das rezas ser lançada sobre o caixão.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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