Fui outro dia a um almoço de
jornalistas. Há muito tempo não via tantos jornalistas juntos. Revi
colegas que não encontrava há longos anos, antigos companheiros dos
mais diversos batentes de jornal — e confesso que isto me comoveu,
me sentir no meio desta nossa fauna tão desunida, como um marinheiro
encanecido que reencontra colegas de antigas equipagens, evoca o nome
de barcos já perdidos no fundo do mar e dos tempos.
Foi ao lado de um desses velhos amigos
que me sentei, e a conversa em torno ia alegre e trivial quando
alguém pronunciou o nome de um colega que se acabou há pouco tempo,
obscuramente, de uma doença longa e ruim. Meu amigo fez-se grave,
ficou um instante calado, e depois disse, como se acabasse de fazer
uma descoberta, que esta nossa vida é uma coisa precária, que não
vale nada. E durante algum tempo nos deixamos pensar nessa coisa
terrivelmente simples, a morte; tivemos o sentimento e a consciência
de que nós dois e nós todos que ali estávamos, na bela manhã de
sol, éramos apenas condenados à morte; cada um se acabará por sua
vez, de repente, num estouro, ou devagar, aniquilado pela humilhação
da doença.
Não há pessoa tão distraída que não
tenha vivido esses instantes de consciência da morte, esses momentos
em que a gente sente que ela não é apenas uma certeza futura, é
alguma coisa já presente em nós, que faz parte de nosso próprio
ser. Há uma força dentro de nós que instintivamente repele essa
ideia, a experiência de cada um diz que a morte é uma coisa que
acontece... aos outros. Mesmo quem — é o meu caso — já teve
alguns instantes na vida em que se viu em face da morte, e a julgou
inevitável, e já teve outros instantes em que a desejou como um
descanso e uma libertação — não incorpora esta experiência ao
sentimento de vida. Deixa-a de lado, esquece-a, todo voltado para a
vida, fascinado pelo seu jogo, pelo seu prazer, até pela sua
tristeza.
Tudo o que, em um momento realmente
grave, nos pareceu sem qualquer importância, todas essas joias
falsas com que enfeitamos nós mesmos a nossa vida, tudo volta a
brilhar com um fascínio tirânico. Inútil “realizar” a morte,
para usar este útil barbarismo dos maus tradutores de inglês. A
realidade vulgar da vida logo nos empolga, a morte fica sendo alguma
coisa vaga, distante, alguma coisa em que, no fundo de nosso coração,
não acreditamos.
Dessa pequena conversa triste, em que
dissemos as coisas mais desesperadoramente banais, saímos, os dois,
com uma espécie de amor raivoso à vida, ciúme e pressa da vida.
Volto para casa. Estou cansado e tenho
motivo já não digo para estar triste, mas, vamos dizer, aborrecido.
Mas me distraio olhando o passarinho que trouxe da roça. Não é
bonito e canta pouco, esse bicudo que ainda não fez a segunda muda.
Mas o que é fascinante nele, o que me prende a ele, é sua vida, sua
vitalidade inquieta, ágil, infatigável, seu apetite, seu susto, a
reação instantânea com que abre o bico, zangado, quando o ameaço
com a mão. Ele agora está tomando banho e se sacode todo, salta,
muda de poleiro, agita as penas — e me vigia de lado, com um
olhinho escuro e vivo.
Mudo-lhe a água do bebedouro, jogo-lhe
pedrinhas de calcita que ele gosta de trincar. E me sinto bem com
essa presença viva que não me compreende, mas que sente em mim um
outro bicho, amigo ou inimigo, uma outra vida. Ele não sabe da
morte, não a espera nem a teme — e a desmente em cada vibração
de seu pequeno ser ávido e inquieto. Meu bicudo é um grande
companheiro e irmão, e, na verdade, muito me ajuda.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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