segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Torto Arado | 16

 

A capa do livro e a foto histórica, do italiano Giovanni Marrozzini


Cresci escutando as histórias de José Alcino, meu pai, o Zeca Chapéu Grande. Algumas vinham de sua própria energia e disposição para contá-las aos filhos, de sangue ou de santo. Mas grande parte vinha da memória de minha mãe, que já ouvia histórias sobre meu pai antes mesmo de se conhecerem e de receber proposta para viver com ele. Foi dela que ouvi as mais emocionantes, e também as que custávamos a acreditar que tinham acontecido. Ouvi as primeiras ainda quando era criança, mas guardei pouca coisa do que se contava. À medida que crescia, via meus irmãos indagarem sobre nossas origens. Eles respondiam e nós apenas escutávamos seus desabafos. Muitas vezes as histórias vinham em momentos de reprimenda, quando nos queixávamos da quantidade de trabalho.
Vocês não passaram metade do que seu pai passou”, dizia minha mãe, enquanto debulhava as vagens do feijão que seria vendido na feira. “Isso foi muito antes, muito antes de chegar para esta fazenda.” Meu pai havia nascido quase trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda cativo dos descendentes dos senhores de seus avós. Minha avó, Donana, havia dado à luz ao filho José Alcino em meio a uma plantação de cana na Fazenda Caxangá. Ele nasceu no meio de um charco, porque não haviam permitido que sua mãe deixasse de trabalhar naquele dia. Meu pai veio ao mundo cercado das mulheres que, assim como minha avó, cortavam apressadas a cana sob a vigilância dos capatazes da fazenda. Donana dizia que ele nasceu com os olhos esbugalhados e não chorou nos primeiros minutos. Quase sem forças o levou ao seio para que tomasse de seu peito. Somente depois de saciado deu um berro, que pôde ser ouvido de longe, anunciado sua chegada.
Meu pai foi o primeiro dos onze filhos que minha avó teve com diferentes maridos. Chamavam nossa avó de Donana Chapéu Grande porque não abandonava o chapéu de palha do primeiro companheiro. Ele havia falecido pouco antes do nascimento de meu pai, e minha avó durante muito tempo não se conformou com seu destino. De longe, apesar de sua baixa estatura, era vista nas plantações cortando cana, por causa do chapéu que havia decidido usar até o fim da vida. Protegia seus olhos do sol forte, ao mesmo tempo que contribuía para a imagem de feiticeira que se criou à sua volta. De Donana só sabíamos que a chamavam assim, nem sabíamos o nome que sua mãe ou seu pai haviam lhe dado. Minha mãe apenas dizia que deveria ser Ana. Quando morreu, não tinha sequer documento, e como foi enterrada no cemitério da Viração, ninguém reclamou.
Da boca de Donana não soube quase nada. Só da insistente lembrança de Carmelita e de um medo de onça que ninguém entendia muito bem. Salu era quem contava dos anos que ela própria havia vivido em Caxangá, e mesmo assim só se dispôs a falar depois que a sogra já não estava mais viva. Ela só teve contato com as histórias que contava na mocidade, quando deixou as terras de Bom Jesus da Lapa ao lado dos pais, rumando para a fazenda onde conheceu Donana Chapéu Grande e o filho, que já eram parte das crenças daquelas terras.
Minha mãe me contou que, ainda menina, Donana viveu na companhia da família do capataz que havia assumido sua guarda, servindo como empregada em sua casa na fazenda. Foi lá que passou a sentir grande desconforto, pouco antes do período de sua menarca. Tinha febre, sentia um sono intenso durante o dia, não conseguia dormir à noite. Vomitava quase tudo que lhe caía no estômago. Ouvia a dona da casa dizer que ela estava com encosto, que não iria durar muito tempo. Dias antes de o sangue lhe escorrer pelas pernas, Donana passou a ver objetos balançarem de forma violenta, o mato seco queimar por onde caminhava, e até mesmo as roupas que secavam no varal desaparecer como palha seca. A família, com medo, levou a menina para um curador conhecido de Caxangá, e a deixaram hospedada em sua casa. Lá, Donana viu portas e janelas baterem onde nem corrente de ar havia, viu a esteira de palha que foi destinada para o seu sono queimar. Até que o curador desistiu do tratamento.
A família percorreu léguas, de casa em casa os curadores conhecidos da região, “bateram em dezesseis portas, dezesseis casas de jarê”, disse Salu, enquanto retirava as folhas secas da pequena horta no quintal. “Eram os curadores mais conhecidos da Chapada Velha.” Por último, a menina passou a receber encantados, com mais frequência o Velho Nagô, e foi dito à família que o problema do outro mundo tinha sido resolvido. Os encantados a aguardariam chegar à idade adulta para que pudesse ela própria ser uma curadora e guiar os espíritos em benefício dos que necessitavam de seus poderes. Foi nessa última casa, ao lado do curador João do Lajedo, que Donana aprendeu a manejar ervas e raízes para fazer xaropes e remédios para os mais distintos males que acometiam gente de toda origem: de coronéis a trabalhadores, de moças ricas que viviam na cidade às mulheres da roça que trabalhavam ao lado de seus maridos.
Quando o destino levou José Alcino, o marido, ao seu encontro, Donana não teve dúvidas de que se abrigaria embaixo do chapéu que o protegeu do sol durante a longa travessia que havia feito. José migrou das cercanias do Recôncavo para a Chapada, atraído pela promessa de riqueza, vinda das notícias de exploração de diamante. Tão logo chegou à região, viu que a sanha pela pedra havia transformado a terra num horizonte de lutas e de bandos armados guiados por coronéis que enriqueciam às custas do sangue e da loucura dos que se entregavam à sorte do garimpo. O homem, então, deitou sua sacola com seus poucos objetos e duas mudas de roupa no chão onde Donana vivia. Decidiu fazer o que havia aprendido com seus pais, o que o havia sustentado até o momento da partida e durante o caminho em que seguiu para chegar à Chapada. José Alcino pediu uma enxada e mostrou que sabia trabalhar a terra. Pediu morada na mesma fazenda onde minha avó vivia cativa, sem nunca ter tentado deixar seus tutores, trabalhando pelo que comia. Construiu uma casa de barro, cobriu com junco, fez amizade com o capataz que havia criado Donana. Com o tempo, disse que precisava de companhia, que queria família e não podia viver sozinho. Notou que a moça não parava de olhar para o seu chapéu, e mesmo evitando seus olhos, a levou para casa.
Pouco antes de Donana dar à luz a meu pai, José Alcino caiu de um cavalo, enquanto viajava acompanhando um carregamento de cana. Os dons de minha avó voltaram a ser motivo de conversas e intrigas na casa grande, nos rumos que os trabalhadores tomavam para suas roças debaixo do sol. Contou minha mãe que Donana andou devagar, amparada por vizinhas, para o local onde havia ocorrido o acidente. Não chorou quando o viu caído já sem vida no chão, assim como eu não havia derramado lágrima por Tobias. Talvez por motivos diferentes, mas foi estranho saber, depois de tudo o que aconteceu, que a história havia se repetido. Salu disse que, assim que Donana pegou o chapéu caído a alguns passos do corpo, voltou num carro de boi, com a cabeça do homem que havia lhe dado casa e companhia no colo.
Quando minha avó enviuvou pela segunda vez, recebeu um recado do curador João do Lajedo, que já se encontrava muito idoso: era hora de tomar para si as obrigações que Deus havia lhe dado. Deveria cuidar dos encantados que lhe acompanhavam. Deveria servir em sua casa para curar os males do corpo e do espírito dos que fossem encontrá-la. Seu poder era uma dádiva que deveria ser devolvida em favor dos que sofrem. Do contrário, seria perseguida pela má sorte pelo resto da vida, e ela já tinha provas suficientes sobre esta sentença.
Donana não deu ouvido. Faria o que estivesse ao seu alcance. Era raizeira e parteira, e já fazia muito pelo povo que lhe procurava. Mas não podia colocar jarê em sua casa. Não podia organizar festas, hospedar enfermos. Não havia nascido para vida de privações e obrigações sem tempo pra acabar. “Não adianta rogar. Eu não faço e pronto”, devolveu em resposta às palavras da mensageira.
Foi pouco depois dessa época, ou assim entendi, que Zeca, quase homem feito, passou a ter fortes dores de cabeça. Não conseguia concluir o dia de trabalho ao lado da mãe e dos irmãos. Voltava para casa cedo, por vezes não conseguia nem se banhar no rio para retirar a areia que lhe cobria o cabelo e a pele, levantada no ar na tarefa de revolver a terra com arado e enxada em mãos. Deitava no chão, encolhido, sem comer ou dormir. Se passaram dias e Zeca começou a gritar como um animal de caça, lançando gemidos por todo canto, os olhos percorrendo o espaço e as pessoas. Donana viu que sua resistência havia feito com que o filho mais velho enlouquecesse. “Louco, louco”, gritavam as crianças na janela da casa de Donana, que saía à porta com vassoura na mão, sem esquecer o grande chapéu que lhe acompanhava.
Donana tentou de todo jeito fazer com que o filho retornasse do encanto. Deu-lhe xarope de raízes, consultou com o curador João do Lajedo, conversou com outros curadores, e todos diziam que não havia muito a fazer, que ela estava em dívida com os encantados porque se negava a cumprir sua missão na terra. Donana não se sentia capaz para tanto sacrifício. Por isso rezava, acendia vela dia e noite, muitas se apagaram antes de queimar por completo, sinal de que suas intenções não estavam sendo consideradas. Por fim, começou a trancar o filho em casa quando seguia para a roça. Deixava meu pai no quarto, sem coberta que lhe fosse objeto para morte, sem um copo de água, sem vela, sem comida, sem nada que pudesse fazer com que se ferisse. Zeca viveu por alguns dias no espaço escuro de um quarto sem janela.
Até o dia em que Donana retornou para casa e não o encontrou mais lá.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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