A capa do livro e a foto histórica, do italiano Giovanni Marrozzini
Cresci escutando as histórias de José
Alcino, meu pai, o Zeca Chapéu Grande. Algumas vinham de sua própria
energia e disposição para contá-las aos filhos, de sangue ou de
santo. Mas grande parte vinha da memória de minha mãe, que já
ouvia histórias sobre meu pai antes mesmo de se conhecerem e de
receber proposta para viver com ele. Foi dela que ouvi as mais
emocionantes, e também as que custávamos a acreditar que tinham
acontecido. Ouvi as primeiras ainda quando era criança, mas guardei
pouca coisa do que se contava. À medida que crescia, via meus irmãos
indagarem sobre nossas origens. Eles respondiam e nós apenas
escutávamos seus desabafos. Muitas vezes as histórias vinham em
momentos de reprimenda, quando nos queixávamos da quantidade de
trabalho.
“Vocês não passaram metade do que seu
pai passou”, dizia minha mãe, enquanto debulhava as vagens do
feijão que seria vendido na feira. “Isso foi muito antes, muito
antes de chegar para esta fazenda.” Meu pai havia nascido quase
trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda
cativo dos descendentes dos senhores de seus avós. Minha avó,
Donana, havia dado à luz ao filho José Alcino em meio a uma
plantação de cana na Fazenda Caxangá. Ele nasceu no meio de um
charco, porque não haviam permitido que sua mãe deixasse de
trabalhar naquele dia. Meu pai veio ao mundo cercado das mulheres
que, assim como minha avó, cortavam apressadas a cana sob a
vigilância dos capatazes da fazenda. Donana dizia que ele nasceu com
os olhos esbugalhados e não chorou nos primeiros minutos. Quase sem
forças o levou ao seio para que tomasse de seu peito. Somente depois
de saciado deu um berro, que pôde ser ouvido de longe, anunciado sua
chegada.
Meu pai foi o primeiro dos onze filhos
que minha avó teve com diferentes maridos. Chamavam nossa avó de
Donana Chapéu Grande porque não abandonava o chapéu de palha do
primeiro companheiro. Ele havia falecido pouco antes do nascimento de
meu pai, e minha avó durante muito tempo não se conformou com seu
destino. De longe, apesar de sua baixa estatura, era vista nas
plantações cortando cana, por causa do chapéu que havia decidido
usar até o fim da vida. Protegia seus olhos do sol forte, ao mesmo
tempo que contribuía para a imagem de feiticeira que se criou à sua
volta. De Donana só sabíamos que a chamavam assim, nem sabíamos o
nome que sua mãe ou seu pai haviam lhe dado. Minha mãe apenas dizia
que deveria ser Ana. Quando morreu, não tinha sequer documento, e
como foi enterrada no cemitério da Viração, ninguém reclamou.
Da boca de Donana não soube quase nada.
Só da insistente lembrança de Carmelita e de um medo de onça que
ninguém entendia muito bem. Salu era quem contava dos anos que ela
própria havia vivido em Caxangá, e mesmo assim só se dispôs a
falar depois que a sogra já não estava mais viva. Ela só teve
contato com as histórias que contava na mocidade, quando deixou as
terras de Bom Jesus da Lapa ao lado dos pais, rumando para a fazenda
onde conheceu Donana Chapéu Grande e o filho, que já eram parte das
crenças daquelas terras.
Minha mãe me contou que, ainda menina,
Donana viveu na companhia da família do capataz que havia assumido
sua guarda, servindo como empregada em sua casa na fazenda. Foi lá
que passou a sentir grande desconforto, pouco antes do período de
sua menarca. Tinha febre, sentia um sono intenso durante o dia, não
conseguia dormir à noite. Vomitava quase tudo que lhe caía no
estômago. Ouvia a dona da casa dizer que ela estava com encosto, que
não iria durar muito tempo. Dias antes de o sangue lhe escorrer
pelas pernas, Donana passou a ver objetos balançarem de forma
violenta, o mato seco queimar por onde caminhava, e até mesmo as
roupas que secavam no varal desaparecer como palha seca. A família,
com medo, levou a menina para um curador conhecido de Caxangá, e a
deixaram hospedada em sua casa. Lá, Donana viu portas e janelas
baterem onde nem corrente de ar havia, viu a esteira de palha que foi
destinada para o seu sono queimar. Até que o curador desistiu do
tratamento.
A família percorreu léguas, de casa em
casa os curadores conhecidos da região, “bateram em dezesseis
portas, dezesseis casas de jarê”, disse Salu, enquanto retirava as
folhas secas da pequena horta no quintal. “Eram os curadores mais
conhecidos da Chapada Velha.” Por último, a menina passou a
receber encantados, com mais frequência o Velho Nagô, e foi dito à
família que o problema do outro mundo tinha sido resolvido. Os
encantados a aguardariam chegar à idade adulta para que pudesse ela
própria ser uma curadora e guiar os espíritos em benefício dos que
necessitavam de seus poderes. Foi nessa última casa, ao lado do
curador João do Lajedo, que Donana aprendeu a manejar ervas e raízes
para fazer xaropes e remédios para os mais distintos males que
acometiam gente de toda origem: de coronéis a trabalhadores, de
moças ricas que viviam na cidade às mulheres da roça que
trabalhavam ao lado de seus maridos.
Quando o destino levou José Alcino, o
marido, ao seu encontro, Donana não teve dúvidas de que se
abrigaria embaixo do chapéu que o protegeu do sol durante a longa
travessia que havia feito. José migrou das cercanias do Recôncavo
para a Chapada, atraído pela promessa de riqueza, vinda das notícias
de exploração de diamante. Tão logo chegou à região, viu que a
sanha pela pedra havia transformado a terra num horizonte de lutas e
de bandos armados guiados por coronéis que enriqueciam às custas do
sangue e da loucura dos que se entregavam à sorte do garimpo. O
homem, então, deitou sua sacola com seus poucos objetos e duas mudas
de roupa no chão onde Donana vivia. Decidiu fazer o que havia
aprendido com seus pais, o que o havia sustentado até o momento da
partida e durante o caminho em que seguiu para chegar à Chapada.
José Alcino pediu uma enxada e mostrou que sabia trabalhar a terra.
Pediu morada na mesma fazenda onde minha avó vivia cativa, sem nunca
ter tentado deixar seus tutores, trabalhando pelo que comia.
Construiu uma casa de barro, cobriu com junco, fez amizade com o
capataz que havia criado Donana. Com o tempo, disse que precisava de
companhia, que queria família e não podia viver sozinho. Notou que
a moça não parava de olhar para o seu chapéu, e mesmo evitando
seus olhos, a levou para casa.
Pouco antes de Donana dar à luz a meu
pai, José Alcino caiu de um cavalo, enquanto viajava acompanhando um
carregamento de cana. Os dons de minha avó voltaram a ser motivo de
conversas e intrigas na casa grande, nos rumos que os trabalhadores
tomavam para suas roças debaixo do sol. Contou minha mãe que Donana
andou devagar, amparada por vizinhas, para o local onde havia
ocorrido o acidente. Não chorou quando o viu caído já sem vida no
chão, assim como eu não havia derramado lágrima por Tobias. Talvez
por motivos diferentes, mas foi estranho saber, depois de tudo o que
aconteceu, que a história havia se repetido. Salu disse que, assim
que Donana pegou o chapéu caído a alguns passos do corpo, voltou
num carro de boi, com a cabeça do homem que havia lhe dado casa e
companhia no colo.
Quando minha avó enviuvou pela segunda
vez, recebeu um recado do curador João do Lajedo, que já se
encontrava muito idoso: era hora de tomar para si as obrigações que
Deus havia lhe dado. Deveria cuidar dos encantados que lhe
acompanhavam. Deveria servir em sua casa para curar os males do corpo
e do espírito dos que fossem encontrá-la. Seu poder era uma dádiva
que deveria ser devolvida em favor dos que sofrem. Do contrário,
seria perseguida pela má sorte pelo resto da vida, e ela já tinha
provas suficientes sobre esta sentença.
Donana não deu ouvido. Faria o que
estivesse ao seu alcance. Era raizeira e parteira, e já fazia muito
pelo povo que lhe procurava. Mas não podia colocar jarê em sua
casa. Não podia organizar festas, hospedar enfermos. Não havia
nascido para vida de privações e obrigações sem tempo pra acabar.
“Não adianta rogar. Eu não faço e pronto”, devolveu em
resposta às palavras da mensageira.
Foi pouco depois dessa época, ou assim
entendi, que Zeca, quase homem feito, passou a ter fortes dores de
cabeça. Não conseguia concluir o dia de trabalho ao lado da mãe e
dos irmãos. Voltava para casa cedo, por vezes não conseguia nem se
banhar no rio para retirar a areia que lhe cobria o cabelo e a pele,
levantada no ar na tarefa de revolver a terra com arado e enxada em
mãos. Deitava no chão, encolhido, sem comer ou dormir. Se passaram
dias e Zeca começou a gritar como um animal de caça, lançando
gemidos por todo canto, os olhos percorrendo o espaço e as pessoas.
Donana viu que sua resistência havia feito com que o filho mais
velho enlouquecesse. “Louco, louco”, gritavam as crianças na
janela da casa de Donana, que saía à porta com vassoura na mão,
sem esquecer o grande chapéu que lhe acompanhava.
Donana tentou de todo jeito fazer com que
o filho retornasse do encanto. Deu-lhe xarope de raízes, consultou
com o curador João do Lajedo, conversou com outros curadores, e
todos diziam que não havia muito a fazer, que ela estava em dívida
com os encantados porque se negava a cumprir sua missão na terra.
Donana não se sentia capaz para tanto sacrifício. Por isso rezava,
acendia vela dia e noite, muitas se apagaram antes de queimar por
completo, sinal de que suas intenções não estavam sendo
consideradas. Por fim, começou a trancar o filho em casa quando
seguia para a roça. Deixava meu pai no quarto, sem coberta que lhe
fosse objeto para morte, sem um copo de água, sem vela, sem comida,
sem nada que pudesse fazer com que se ferisse. Zeca viveu por alguns
dias no espaço escuro de um quarto sem janela.
Até o dia em que Donana retornou para
casa e não o encontrou mais lá.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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