Uma vez fiz uma viagem do Havre ao Rio de
Janeiro em um navio do Lóide já bastante velho, que, não sei por
que, vinha todo o tempo adernando para bombordo. Em Portugal,
encheu-se de imigrantes e de ex-emigrantes: “patrícios” que
tinham prosperado no Brasil e agora retornavam com toda a família de
uma viagem de passeio à terrinha. Tudo muito boa gente, mas não
muito divertida. Lembro-me da alegria com que saudamos, na noite do
segundo dia, um rapaz de boina que apareceu tocando uma gaita de
fole... Fez um sucesso tão grande que o comandante o convidou a vir
para a primeira classe, dizendo, inclusive, que ele podia fazer as
refeições ali.
Nunca me esquecerei daquele vasto
refeitório do navio, cheio de pesadas famílias portuguesas a
comerem com afinco e a pautarem os dentes com distinção, as mãos
em concha a taparem a boca... O médico de bordo sempre com seu vago
ar de exilado ou asilado. O comandante, honrando as pessoas com o
convite para sua mesa, muito formal; eu sempre o imaginava com um ar
nobre, entre os vagalhões, no naufrágio, a declarar que seria o
último homem a deixar o navio. Isso devia ser bonito, mas não
houve. O mar era implacavelmente liso, dia após dia, a tal ponto
que, embora o navio assim tombado sobre o ombro esquerdo não
merecesse muita confiança, a gente torcia para haver alguma
turbulência no ar e no mar para fazer mal àquelas simpáticas e
imensas famílias e prendê-las em suas cabines, destroçadas pelo
enjoo. Nada. Bom tempo; sete, oito nós de velocidade... E o tocador
de gaita de fole? Cada dia ele parecia mais alegre e tocava com mais
afã. O primeiro sinal de que a plateia estava cansada foi o
desaparecimento de sua gaita, uma noite. Ele ficou na maior aflição
e andava de popa a proa vasculhando e indagando. Houve um passageiro
com cara de pateta que sugeriu. “Vai ver, ela caiu n'água...” A
resposta continha um palavrão, que deu motivo a protestos em nome
das famílias presentes.
Só no dia seguinte, pela manhã, a gaita
foi encontrada em um escaler, metida debaixo de uma lona. O homem e
sua gaita sumiram, e só de muito longe a gente ouvia o seu som,
vindo das profunduras da terceira classe. Respiramos com alívio.
Lembrei-me disso há pouco tempo, quando
fui à Escócia em um grupo de brasileiros, e fomos recebidos em um
restaurante por grandes e vermelhos homens de saia (kilt) a tocar
suas gaitas de fole (bagpipes). Ficamos encantados, mas depois de
algum tempo de ouvir gaita e beber, alguns do grupo encetaram uma
reação com sambas e marchinhas, e pastorinhas e teu cabelo não
nega, mulher rendeira, prenda minha, luar do sertão... Foi pior.
Brasileiro que aqui dentro não canta jamais, dana-se a batucar
cantando aurora e amélia mulher de verdade, essas coisas.
Razão tinha o Vinicius de Moraes. Ele
dizia que não há bar no mundo melhor do que bar de navio; bebida
boa, barata, o mar, o embalo do mar... Mas navio sem brasileiro: por
algum misterioso motivo, a partir do segundo dia de viagem, quando o
barco deixa as águas territoriais, os brasileiros começam a cantar
maringá, maringá, né? — dizia ele, contristado.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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