“Quando a tempestade irrompe em fúria
e o Estado ameaça naufragar, só nos resta lançar a âncora de
nossos estudos nas profundezas da eternidade.” Assim escreveu o
grande astrônomo alemão Johannes Kepler no início do século XVII,
quando a Europa passava por terríveis conflitos entre católicos e
protestantes, as disputas que culminariam na devastadora Guerra dos
Trinta Anos em 1618.
O Estado a que Kepler se referia, o Sacro
Império Romano-Germânico com sede em Praga, naufragava sob o
comando caótico do imperador Rodolfo II, mentalmente instável. Nos
bastidores da corte e pelos centros urbanos, diferentes facções
religiosas disputavam o poder. As instituições colapsavam, e
ninguém confiava em ninguém. Na Itália, a Igreja intensificava a
repressão ideológica na luta contra a Reforma Protestante. Em 1616,
Galileu Galilei foi caucionado pelo cardeal Bellarmine, mestre das
questões controversas do Colégio Romano, que o desafiou a provar de
forma convincente que a Terra gira em torno do Sol ou calar-se por
completo.
Embora Kepler e Galileu temessem por suas
vidas, não renunciaram à liberdade de cogitar sobre os mecanismos
do mundo natural. Ignorando a repressão, avançaram suas pesquisas,
que culminaram, ainda no mesmo século, no abandono das ideias de
Aristóteles, que haviam dominado o pensamento ocidental e
eclesiástico por dezoito séculos. A coragem intelectual deles abriu
as portas para o mundo moderno. A repressão religiosa e as guerras
passam, mas o conhecimento científico permanece. Não vivemos no
século XVII, mas seria inocente – especialmente dada a atitude do
governo atual – achar que a ciência e sua credibilidade não estão
sendo atacadas.
Vemos isso todos os dias, quando muitos
políticos e amadores criticam, sem a menor autoridade ou
conhecimento, as conclusões de milhares de cientistas em assuntos
que vão da validade das vacinas ao aquecimento global. Não acredito
que tenhamos um único cientista no Congresso ou no Senado Federal.
Nos EUA, a situação não é muito diferente. É paradoxal e trágico
que isto esteja ocorrendo em pleno século XXI, quando dependemos tão
diretamente das tecnologias resultantes da aplicação da pesquisa em
ciência básica.
O vídeo SOS Ciência, produzido
por cientistas brasileiros, é extremamente importante e deveria ser
visto por todos. Sem a ciência brasileira, não existe a agricultura
de ponta que transformou o Brasil numa grande potência agropecuária
internacional, fornecendo alimentação para centenas de milhões de
pessoas. Sem a ciência brasileira, não existem carros movidos a
álcool ou gás natural, com flexibilidade no uso do combustível.
Sem a ciência brasileira, não temos liderança na exploração de
águas profundas, ou no controle e erradicação de várias doenças
tropicais.
Como então, me pergunto, nos encontramos
na situação absurda de termos governos que parecem declarar guerra
ao conhecimento científico? Essa é uma questão crucial, que
pertence a todos nós, e não só aos cientistas. Existe um abismo
imenso entre o mundo da ciência e o mundo da política. A maioria
dos líderes políticos pouco sabem sobre ciência (com louváveis
exceções) e não parecem ter o menor interesse pelo assunto. Tendo
ensinado ciência numa universidade por 27 anos, vejo uma divisão
clara entre os alunos que gostam ou não de matemática e de
ciências. Existem, como disse, exceções importantes, mas tirando
os alunos interessados em legislação de patentes ou ambiental, a
maioria que decide cursar advocacia e seguir carreira política não
é composta de interessados nas disciplinas CTEM (Ciência,
Tecnologia, Engenharia, Matemática).
Seria interessante ter um estudo
quantitativo para saber como esse déficit afeta posições políticas
relacionadas à ciência e sua importância, especialmente quando o
governo atua sem uma consultoria científica. O resultado é que, sob
a pressão de grupos de interesse diversos, questões de natureza
científica viram assuntos “abertos ao debate público”: pessoas
que pouco sabem sobre o uso da metodologia científica utilizada para
se chegar a certa conclusão se acham no direito de opinar e
criticar, baseadas em... Baseadas em quê, exatamente? Informações
incompletas e propaganda de grupos de interesse que manipulam a
opinião pública para servir aos seus propósitos, em geral para
garantir os ganhos de seus investidores.
Com isso, a ciência e seus resultados –
obtidos após anos de trabalho meticuloso realizado por profissionais
treinados – se transformam em mera opinião, como se fossem
futebol, moda ou filmes. É como se o cirurgião virasse advogado e o
juiz virasse engenheiro. As pessoas tendem a confundir o processo de
como a ciência é feita – por meio de autocorreção e constante
melhora de resultados – com imprecisão e incerteza. Este é um
erro grave.
A ciência avança em estágios, mas
avança, e vemos os resultados disso por toda parte. Basta comparar a
qualidade das TVs ou dos computadores de dez anos atrás com os de
hoje. Celulares? GPSs? TVs de ultradefinição? Bluetooth? De onde
vieram essas invenções e tecnologias? Quem são esses inventores?
Certamente, não os políticos que querem cortar o orçamento da
ciência. Eles apenas usam os frutos da pesquisa, aparentemente
achando que surgem do nada, como se fosse mágica. Kepler viu o
Estado colapsar à sua volta, e pouco pôde fazer a respeito. Não
podia pegar uma espada para lutar, pois não era um herói dos campos
de batalha e sim do mundo das ideias. O que ele e Galileu fizeram foi
olhar para os céus, buscando verdades eternas, além da fragilidade
e confusão dos homens.
O que fizeram permanece vivo, enquanto as
guerras e repressões ideológicas ficaram no passado. Penso nas
crianças e jovens espalhados pelo Brasil, nos potenciais Galileus e
Keplers, que não terão a oportunidade de expandir seus horizontes,
que viverão num país onde a carreira científica será cada vez
mais vista como um tabu, como uma opção profissional inviável. É
triste ver nosso país tomar esse rumo, controlado por pessoas que
parecem não entender as consequências desastrosas de suas ações.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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