Nelsinho marcou o cartão, desceu pelo
elevador com o guarda-livros. Pediu que o justificasse perante o
gerente, no caso de se atrasar: almoçava com o tio chegado de
viagem.
– Por que não fala com o homem?
O herói mordia o canto da unha e, de
instante a instante, sugava uma gota de sangue.
– O bruto me deixa aflito.
No bar da esquina o primeiro cálice –
um gole só.
– Cuidado, rapaz. Bebe muito depressa.
Metendo-se na vida alheia, não se queixe
a guarda-livros quando mergulhe no poço do elevador. Nelsinho virou
mais dois tragos, saiu para a rua ensolarada. Olhava o relógio de
pulso, embora sem pressa nem rumo, seguindo de longe as damas; ah,
esquecera o óculo escuro, admirar-lhes as prendas sem se denunciar.
Não resistiu a um chope bem gelado e enxugou o bigodinho.
Graças a Deus pelas mulheres, tão bem
feitas para serem acariciadas – ratinho branco, gato angorá,
porquinho-da-índia. Algumas gostaria de embalar no colo. A outras
pediria, virando o olho, que lhe queimassem o cabelo do peito na
brasa do cigarro. Para onde girasse a cabeça, lá estavam elas,
braços nus, a penugem dourada arrepiando-se aos seus beijos soprados
na brisa fagueira. Seguiam a passo decidido, estremecendo as
bochechas rosadas, indiferentes e tão distraídas que, se olhavam
para ele, era através dele: nuvem, folha de papel, gota d’água.
Voltando-se irritado, acompanhava o balanço dos cabelos na nuca, a
ondulação das saias no boleio aliciante dos quadris.
Cão sequioso, a língua de sol
resfolegava-lhe no pescoço. Jogou o paletó ao ombro, o toureador no
seu manto de glória. Estava para o amor, não fosse a humilhação
da carteira vazia – até a última das mulheres tem o seu preço.
Mais um vale no caixa, o guarda-livros iria denunciá-lo ao gerente:
o poço do elevador era o fim do espião. Sonolento da bebida, os
bancos da praça convidavam-no para o descanso reservado aos pais de
família. Resistiu impávido, desviou-se para uma rua transversal,
observou a mocinha na calçada oposta – É ela. Agradeceu com falsa
modéstia – Obrigado, Senhor. Eu não mereço.
Sem perdê-la de vista, preparava a
abordagem. Os cartazes na parede sugeriam que fosse ao cinema. Vestiu
o paletó para bem impressionar, atravessou a rua. Ultrapassou-a
alguns passos, fingiu que lia os anúncios. Na vitrina a figura
sinistra de galã barato: desde quando se reflete a imagem do
Nosferatu? Esfregou o lenço no nariz, onde latejava uma espinha –
tarde demais para espremê-la. Então o coração de Nelsinho
disparou: um amigo da família vinha ao seu encontro. Ainda não o
avistara, escondeu-se atrás de uma coluna do saguão – vai saber
que persigo a menina.
Ela admirava os deslumbrantes cartazes de
Ava Gardner, não havia reparado em Nelsinho. Antes que pudesse olhar
através dele – folha de papel, nuvem, gota d’água –,
cumprimentou-a risonho e cuidadoso de não revelar o dentinho preto.
A ingênua correspondeu ao sorriso. Aguardou um pouco, atrás da
coluna, não fosse o amigo da família aparecer. Aflito, rompeu em
marcha batida, esbarrou na menina, que estava abrindo a loja vizinha.
– Já vai entrar, meu bem?
Quase gritou, a mão no decote da blusa
amarela:
– Puxa, que susto!
Meio sorriso, verificou se era seguido.
– É aqui que você trabalha?
– Trabalha com quem? Ah, sozinha, é?
Que importante.
– O teu patrão?
– Está doente.
– Loja de que é?
Era casa decadente, duas portas. A moça
abriu uma das folhas, guardou a chave na bolsa com alça de bambu.
Nelsinho relanceou os olhos na escuridão.
– Colchão, acolchoado, travesseiro.
– A que hora você sai?
– Fico até às seis.
– Se a encontrasse na saída?
Não roa a unha, desgraçado, que está
perdido.
- Como é? Posso ou não posso?
Ela sorriu, no lábio uma gotinha de
suor: sim.
– Ah, seu nome, qual é?
Ó, Senhor, não tens piedade; cometera o
primeiro erro, voltando para a menina a orelha boba. Escapou-lhe o
nome, já não teria coragem de repetir a pergunta. A seus pés, a
nuvem de fogo tremulando no asfalto, como resistir à sedução da
fresca penumbra?
– Será que podia entrar?
Avançou na frente dela, que ainda
protestou:
– Não tem nada para ver.
Apertava os olhos, sem distinguir na
sombra: pilhas de colchões erguiam-se pelos cantos. Curvou-se a
menina, o trinco da segunda folha. O herói descortinou a face
calipígia – quem diria, aquela mocinha magra! –, ficou
tremendamente excitado. Estou cansado, Senhor, são tantas mulheres e
eu tão sozinho. Ela não conseguia suspender a lingueta, ergueu-se a
soprar o dedinho:
– Veja se faz alguma coisa. Puxe o
trinco ao menos.
Sem beber, voltava ao que era: cão
lazarento. Na penumbra, o bafio da loja decrépita Encaminhou-se a
menina para a outra porta. Nelsinho, ao sacudir o torpor, sentiu
debaixo do pé o soalho vacilante e, cruzando com ela, alisou-lhe em
furtiva carícia o cabelo ruivo.
– Não. Não me pegue.
Nelsinho inclinou-se para o trinco, o
acento lânguido e perverso – Não, não me pegue –, em recusa
que, tão indolente, era antes um convite, mudou de ideia e empurrou
a porta com o pé. Lá fora, sentado no carro, um motorista gordo
bocejando volveu a cabeça tarde demais.
Para surpresa de Nelsinho, não ficou no
escuro: os dois quadros luminosos das bandeiras no soalho. A moça,
ainda sem entender – meu Deus, terei de fazer uma carnificina? –,
bulia na segunda porta. Chegando-se por trás, mãos em concha
empolgou-lhe o busto. Sua longa busca recompensada e, sob as
barbatanas, encontrou a mansa paz de dois pequenos seios.
Surpreendida, sem largar a tranca, inocente do que lhe acontecia:
– Nojento... Seu nojento!
Ao ouvido bom do herói queixume de amor,
algum travo de fúria. A moça cravou-lhe as unhas na mão. Ela
enterrava as unhas, Nelsinho esmagava os seios com força. Crispando
a mão, alegrou-se de roer as unhas, não a machucava mais do que
devia. A menina não resistiu e gemeu, a cabeça inclinada para trás.
Deixou que se voltasse. Soltando os seios, agarrou nas duas mãos o
rosto.
Ela girou e bateu com a bolsa na sua
perna direita.
Beijou-a duramente na boca. Ela se opôs,
sem conseguir afastar o rosto. O herói descolou os lábios para
recobrar fôlego. A menina fitava-o com susto atrás do óculo de
gatinha. Daí a beijou novamente. Continuava se recusando, mas não
muito: abateu o braço, a bolsa escorregou. Nelsinho recuou um
instante a cabeça para respirar. Na terceira vez a menina retribuiu,
ainda de boca fechada – ele sopesava na palma um dos seios,
precioso e frágil ovo quente do ninho.
Suspendeu o beijo, olhou ao redor: a luz
das bandeiras na chita encarnada dos edredões e travesseiros azuis.
O rosto nas mãos, arrastou-a até a pilha de colchões. A moça
tombou com um gemido, o vestido suspenso descobriu a combinação
branca enfeitada de rendas. De joelho, quis voltar a beijá-la, os
dedos agarrados no seio. A bela fugiu com o rosto. Como também usava
óculo, constrangido a retirar o seu, que rolou fora do leito e quase
deu um grito no susto de quebrá-lo. Imobilizou lhe o rosto, alcançou
os lábios e, a beijá-la, subia o vestido, desde o joelho redondo
até a amplidão da coxa alvacenta. A calça de malha, teria de
rasgar.
Óculo embaçado da moça, estava de olho
aberto? Ela não se mexia, ofegante de medo ou prazer. Nelsinho
enterrava-lhe o nariz nos longos cabelos vermelhos – ai, Senhor, de
nós dois qual a vítima?
Tateou o soalho empoeirado até achar o
óculo. Morcego condenado à caça nas trevas, observou a boca
infantil, antes agressiva de batom, indefesa nos lábios finos e
entreabertos. Ergueu-se e, a seus pés, na trêmula faixa de poeira
luminosa, a pecinha de malha rósea.
Bem educado, deu-lhe as costas para se
abotoar, recolheu as medalhas bulindo na corrente. Por sua vez, a
bela ajeitou a anágua e as pregas da saia, alisando-a diversas vezes
com a mão.
Voltara a sua timidez, uma vontade de
chorar, como agir em face das damas? Não queria chegar tarde, podia
perguntar a hora.
Também ela se atrasara na abertura da
loja; dirigiu-se à porta, apanhando a bolsa no caminho, deslocou a
tranca. Em galanteio, Nelsinho abriu a outra porta. Escancarou uma
das folhas e abaixou-se para o trinco, que correu fácil. E o gordo
que o tinha ouvido ou visto bater a porta? Piscou o olho: o carro lá
não estava. A moça entretida com a máquina de escrever. Ah,
Senhor, deste-me a voz, não as palavras. Pedir desculpa, combinar
encontro, perguntar a hora? Antes que ela se voltasse, partiu sem se
despedir.
Bateu o ponto, olhou o cartão. Chegara
em tempo: o incidente na loja consumado em poucos minutos. Sentou-se
à sua mesa, enrolou o papel na máquina: a mão suja de sangue. Foi
ao banheiro lavá-la com receio de infecção. Ao procurar o lenço,
não o achou, perdido na loja – o seu nome bordado no canto.
De repente viu-se no espelho, pálido de
susto. Umedeceu o cabelo, penteou-se devagar: o cabelo fabuloso de
Nelsinho. Sorriu entre surpreso e satisfeito, baixou a cabeça e
murmurou: Obrigado, Senhor.
Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba
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