Todo mundo já teve alguma experiência
assustadora com o clima: uma tempestade devastadora, rios em cheia,
desabamentos, ressacas violentas... No Brasil, até que temos sorte,
já que não precisamos nos preocupar com terremotos, furacões ou
vulcões. Mesmo assim, por experiência própria ou por notícias de
outros países, cansamos de ver que, quando a Natureza resolve
demonstrar seus poderes, nossos recursos e ingenuidade, mesmo que
úteis, raramente são suficientes.
Claro, estamos longe da situação
precária de nossos ancestrais das cavernas, estes sim completamente
à mercê dos elementos. Mas é só chegar a tempestade, o furacão,
o maremoto, o terremoto ou a erupção vulcânica para nos sentirmos
como formigas pisoteadas por uma criança de 3 anos. A ordem natural
obedece a uma hierarquia rígida, e quem acha que estamos no seu
ápice comete um grave erro. Seres humanos são produto de
circunstâncias específicas, que combinam a aleatoriedade das
mutações genéticas e o ambiente em que nossos antepassados
evoluíram.
Após milhões de anos, uma série de
transformações em nossos primos hominídeos acabaram por gerar a
nossa espécie, não muito mais do que cerca de 200 mil anos atrás.
O que é praticamente nada, quando comparados aos 4,5 bilhões de
anos da Terra. Em termos de história planetária, acabamos de
chegar. A operação dos nossos sentidos (por exemplo, nossos olhos,
que enxergam do vermelho ao violeta e não radiação infravermelha
ou ondas de rádio), nossos músculos e ossos, a funcionalidade dos
nossos corpos são otimizados para este planeta, dentro de condições
climáticas que, apesar de flutuações de temperatura, não mudaram
tanto nos últimos 20 mil anos.
Casacos e aparelhos de ar-condicionado
ajudam, mas têm seus limites. Se saímos do nosso ambiente normal,
logo nos deparamos com sérias limitações. Basta subir uma montanha
de mais de 2.500 metros para ver como fica difícil respirar. No topo
do Monte Everest, nossa funcionalidade metabólica cai para 30%.
Ondas de calor ou frio afetam nosso comportamento e podem ser fatais.
Não temos pelos espessos ou grandes reservas de gordura, nem
chifres, garras e dentes afiados, ferrões venenosos ou um
exoesqueleto para nos proteger.
Nossas vantagens evolucionárias são
outras: a oposição do polegar, glândulas que nos permitem suar (e,
portanto, correr por muito tempo) e um córtex frontal de tamanho
desproporcional ao volume do nosso cérebro. Graças a essas
vantagens, conseguimos transformar o planeta, ou, ao menos, parte de
sua superfície e atmosfera. Infelizmente, nossos pequenos sucessos
em adaptabilidade e controle da Natureza nos cegaram, criando a
ilusão de que podemos dominar o planeta que habitamos com
impunidade. No entanto, basta ocorrer um desastre natural para nos
remeter às nossas condições primordiais: sem abrigo, eletricidade,
comida ou água potável, uma longa lista de confortos da vida
moderna, que achamos que estarão sempre aqui para nós, acessíveis.
E agora?
Nessas situações, doenças se espalham
com facilidade e temos poucas estratégias para nos proteger ou nos
medicar. O que podemos – e devemos – fazer é criar um espírito
de cooperação mútua para nos reagrupar e reconstruir, usando
recursos disponíveis para restabelecer um senso de comunidade. Como
sabemos bem, existirão sempre aqueles que usarão o caos da situação
para se beneficiar individualmente, sem qualquer preocupação com os
que estão ao lado. (Infelizmente, essas pessoas existem mesmo sem
crises naturais).
Por outro lado, é, também, nesse tipo
de situação, quando atingimos o fundo do poço, que o que temos de
melhor vem à tona, indivíduos que se transformam em heróis, muitas
vezes arriscando suas vidas por pessoas que nem conhecem. Nessa hora,
a Natureza nos dá uma lição de vida, e somos obrigados a resgatar
nossa humanidade, quando a sobrevivência do grupo é mais importante
do que a do indivíduo, e o espírito social triunfa sobre a ganância
pessoal. Nas próximas décadas, à medida que o aquecimento global
mudar cada vez mais o planeta, vivenciaremos eventos climáticos com
severidade crescente, no Brasil e no resto do mundo. Essas crises
irão desafiar nossa capacidade de se adaptar a condições
ambientais extremas.
Se iremos ou não sobrepujá-las,
dependerá, em grande parte, da habilidade que temos de preservar o
nosso senso de comunidade e de resgatar nossas melhores qualidades,
passando por cima das tantas diferenças culturais que nos separam.
Os testes serão difíceis, especialmente hoje, quando nosso
equilíbrio social é já precário. Sendo um otimista, acredito que,
quando as várias crises futuras desafiarem a nossa sobrevivência,
teremos mais heróis do que oportunistas definindo nosso futuro.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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