Os dias passavam. Eu teimava, bancava o
forte, mas no fundo do meu coração eu estava triste. Por toda essa
semana de festas, as lembranças voltaram, enchendo meu peito de
música distantes e de entes amados. Uma vez mais surgia-me a justeza
da antiga lenda: o coração do homem é uma poça cheia de sangue;
na borda dessa poça os seres amados se deitam para beber o sangue e
se reanimar; e quanto mais lhe são caros, mais eles lhe bebem o
sangue.
Vésperas do ano novo. Chegou até nosso
barracão um bando de moleques da aldeia, trazendo um grande barco de
papel.
Começaram, com suas vozes agudas e
alegres, a cantar a calanda:
São Basílio chegou de sua terra
natal, Cesareia.
Ele lá está, diante dessa pequena
praia cretense azul-índigo.
Apoiava-se em seu bastão, o bastão
logo se abriu de folhas e flores, e o canto do ano novo soou:
Que sua casa, mestre, seja cheia de
trigo, azeite, vinho;
Que sua mulher sustente, como uma
coluna de mármore, o teto de sua casa;
Que sua filha se case e tenha nove
filhos e uma filha;
E que seus filhos libertem
Constantinopla, a cidade de nossos Reis!
Feliz ano novo, cristãos!
Zorba escutava, maravilhado; havia tomado
o tamborim das crianças e o fazia ressoar freneticamente.
E olhava, escutava, sem dizer nada.
Sentia cair de meu coração uma outra folha, um outro ano. Fazia um
passo a mais em direção da poça negra.
— Que há com você, patrão? —
perguntou Zorba que cantava a plenos pulmões com os moleques e batia
no tamborim. — Que há com você? Você está com a pele escura,
você envelheceu. Eu, em dias assim, viro menino, eu renasço como o
cristo. Ele não nasce todos os anos? Comigo é igualzinho.
Estendi-me sobre minha cama e fechei os
olhos. Essa noite estava de mau humor e não queria falar.
Não podia dormir, como se tivesse, essa
noite, que prestar conta de meus atos, toda a minha vida subia,
rápida, incoerente, incerta, como um sonho, e eu olhava desesperado.
Como uma nuvem emplumada, batida pelos ventos das alturas, minha vida
mudava de forma, se desfazia e se recompunha. Ela se metamorfoseava —
cisne, cão, demônio, escorpião, macaco — e sem cessar a nuvem e
esgarçava e se unia, cheia de arco-íris e de vento.
O dia nasceu. Não abri os olhos; eu me
esforçava para concentrar meu desejo ardente, romper a carapaça do
cérebro e entrar no obscuro e perigoso canal por onde cada gota
humana vai se juntar ao grande oceano. Tinha pressa em rasgar esse
véu para ver o que me trazia o ano novo...
— Bom dia, patrão, feliz ano novo!
A voz de Zorba jogou-me brutalmente em
terra firme. Abri os olhos e ainda vi Zorba atirar sobre o chão da
entrada do barracão uma romã enorme. Os frescos rubis saltaram até
minha cama, apanhei alguns e comi, e minha garganta refrescou-se.
— Desejo que ganhemos muito e que
sejamos raptados por belas moças! — gritou Zorba de bom humor.
Lavou-se, barbeou-se, vestiu suas
melhores roupas — calças verdes de pano, casaco de burel grosso
marrom e jaqueta de pele de cabra, já meio roçada. Botou também
seu barrete russo de astracã, torceu os bigodes e disse:
— Patrão, vou até a igreja, como
representante da companhia.
Não perderei nada com isso, hein! E
depois, fará passar o tempo.
Inclinou a cabeça e piscou o olho.
— Talvez eu veja também a viúva —
murmurou.
Deus, os interesses da companhia e a
viúva formavam uma mistura harmoniosa aos olhos de Zorba. Ouvi seus
passos se afastarem, e pulei da cama.
O encantamento estava rompido, minha alma
reencontrou-se trancada em sua prisão de carne.
Vesti-me e fui até a beira do mar.
Andava depressa e estava alegre, como se estivesse escapado de um
perigo ou de um pecado.
Meu desejo indiscreto da manhã de
espionar e capturar o futuro antes que nascesse, apareceu-me
subitamente como um sacrilégio.
Lembrei-me de uma manhã em que encontrei
um casulo preso à casca de uma árvore, no momento em que a
borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei algum
tempo, mas estava com pressa e ela demorava muito. Enervado,
debrucei-me e comecei a esquentá-lo com meu sopro. Eu o esquentava,
impaciente, e o milagre começou a desfiar diante de mim em ritmo
mais rápido que o natural. Abriu-se o invólucro e a borboleta saiu
se arrastando. Não esquecerei jamais o horror que tive então: suas
asas ainda não se haviam formado, e com todo o seu pequeno corpo
trêmulo ela se esforçava para desdobrá-las. Debruçado sobre ela,
eu ajudava com meu sopro. Em vão. Um paciente amadurecimento era
necessário e o crescimento das asas devia se fazer lentamente ao
sol; agora era muito tarde. Meu sopro havia obrigado a borboleta a se
mostrar, toda enrugada, antes do tempo. Ela se agitou, desesperada, e
alguns segundo depois morreu na palma de minha mão.
Creio que esse pequeno cadáver é o
maior peso que tenho na consciência. Pois, compreendo atualmente, é
um pecado mortal violar as leis da natureza. Não devemos apressar,
nem nos impacientar, mas seguir com confiança o ritmo eterno.
Sentei-me sobre um rochedo para assimilar
com toda tranquilidade esse pensamento no ano novo. Ah! Se essa
borboleta pudesse esvoaçar sempre diante de mim, e me mostrar o
caminho.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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