Enquanto isso não acontece, arqueólogos
e bioantropólogos têm conseguido pintar um retrato cada vez mais
detalhado de como era a vida no interior de Minas entre o fim do
Pleistoceno e o começo do Holoceno, e as surpresas não cessam de
aparecer. Talvez a mais estranha delas tenha a ver com os mamíferos
monstruosos da Era do Gelo que estrelaram o começo deste capítulo.
Embora eles certamente tenham convivido com os paleoíndios de Lagoa
Santa — há datações de ossos de preguiça-gigante e
dente-de-sabre indicando que eles ainda estavam por aí há 9.500
anos, ou seja, dois milênios depois da época de Luzia —, há
pouquíssimos sinais de que os primeiros brasileiros os caçassem ou
devorassem.
Como dizia o saudoso astrônomo e
divulgador de ciência Carl Sagan (1934-1996), ausência de evidência
não é evidência de ausência. Pode até ser que os restos de um
lauto churrasco de Eremotherium laurillardi tenham sido
descartados na lagoa de uma caverna da Chapada Diamantina, à espera
de algum paleontólogo de faro apurado que identifique marcas de
descarnamento na descomunal coxa do bicho. Por enquanto, porém, os
poucos achados que parecem apontar nessa direção são dúbios. Um
dos mais recentes e intrigantes é justamente um fragmento de dente
de preguiça-gigante, encontrado em Sergipe pelo paleontólogo Mário
Dantas, que parece ter sido retrabalhado pela ação humana, embora
alguns pesquisadores duvidem dessa interpretação.
Esse relativo silêncio sobre a interação
entre megafauna e paleoíndios do Brasil soa especialmente estranho
porque a imagem tradicional dos paleoíndios, forjada em escavações
feitas na América do Norte, é a de caçadores de megafauna por
excelência, gente que abatia mamutes-lanosos (Mammuthus
primigenius) com as célebres lanças Clovis, dotadas de
elegantes pontas de pedra, assim chamadas por causa do sítio
arqueológico de Clovis, no Novo México, onde foram encontradas pela
primeira vez. Todas as evidências obtidas em Lagoa Santa até agora,
as quais, aliás, batem com as de outros sítios Brasil afora, é de
uma gente com estratégias generalistas de sobrevivência, coletando
muitos vegetais e dependendo da caça de médio e pequeno porte
(veados, roedores, lagartos) para colocar carne na mesa. Especula-se
que algum tipo de tabu alimentar mágico-religioso poderia ter
mantido esse pessoal à distância da megafauna, mas obviamente é
muito difícil substanciar de alguma maneira essa ideia. De qualquer
modo, embora a maioria dos pesquisadores ainda defenda que o
desaparecimento dos supermamíferos do Pleistoceno na América do
Norte teve ligação direta com a chegada do homem ao cenário, a
situação no nosso pedaço do continente parece ter sido bem mais
complexa.
Os estudos mais recentes que têm tentado
enfrentar o problema andam pintando um cenário mais cheio de nuances
do que o antigo modelo do overkill (algo como “supercaça”
ou “matança generalizada”, em inglês), segundo o qual os
primeiros americanos abateram logo de cara uma quantidade
desproporcional de grandes mamíferos, já que esses bichos, por
nunca terem visto um ser humano antes, seriam especialmente
vulneráveis diante de caçadores de nossa espécie. A questão é
que, com a ajuda de datações com melhor resolução temporal (ou
seja, que estimam a idade de um fóssil com menor margem de erro) e
de dados de DNA dos bichos extintos, muitos pesquisadores têm
apontado que as dezenas de espécies da megafauna não caíram mortas
“de repente” (vá lá, em poucas centenas de anos) quando os
paleoíndios apareceram. O processo foi relativamente gradual,
estendendo-se ao longo de dezenas de milhares de anos, e parece ter
tido relação com os picos de calor que pontuaram o fim do
Pleistoceno, culminando com o aquecimento rápido e intenso que
iniciou a nossa atual era geológica. Calor parece uma coisa boa
quando o globo está todo enregelado, mas grande parte das espécies
da megafauna eram bichos adaptados aos ambientes abertos e secos que
se expandiram nas condições climáticas do Pleistoceno. No Brasil,
por exemplo, mais calor e mais chuva teriam levado à expansão de
florestas úmidas, nas quais bichos imensos como as
preguiças-gigantes provavelmente não se virariam bem. Teríamos
então um processo de contração populacional de supermamíferos,
que teria ganhado um empurrãozinho dos caçadores humanos, os quais,
nesse cenário, teriam apenas desferido o golpe de misericórdia.
Esse, em suma, é o cenário que podemos traçar hoje. É óbvio que
mais e melhores dados poderão alterá-lo no futuro.
Os artefatos recuperados na região de
Lagoa Santa não impressionam. Em geral feitos de quartzo, material
relativamente chato de trabalhar, nenhum deles é tão imponente ou
bem-acabado quanto uma ponta de lança ao estilo Clovis. Não se
deixe enganar por esse cenário aparentemente pouco imaginativo, no
entanto. Se o povo de Luzia não era formado por caçadores
formidáveis ou grandes artífices (a respeito desse segundo ponto
ainda temos algumas dúvidas, já que os instrumentos mais complexos
podem apenas ter se perdido, talvez por serem feitos de material
perecível), sua vida cultural e seus rituais parecem ter sido
riquíssimos, e pistas preciosas a esse respeito têm sido achadas no
majestoso abrigo da Lapa do Santo.
Qualquer semelhança com uma catedral do
século XIII não é mera coincidência. Do lado de fora, os paredões
de rocha calcária se erguem dezenas de metros acima do chão da
mata, e seu topo também é recoberto de árvores. Conforme o
visitante se aproxima do salão principal da gruta, começam a
aparecer estalactites, estalagmites e outras projeções barrocas da
interação entre a rocha e a água ao longo dos milênios. O solo
pulverulento do abrigo, ao ser escavado, revelou tanto artefatos
quanto restos de animais e plantas — e sepulturas. Dei a sorte de
estar presente quando identificaram o primeiro esqueleto humano, a
começar pelos ossos do quadril. Mais de 30 outros corpos foram
encontrados no lugar com o passar dos anos. O ponto central aqui é
que, em muitos casos, estamos falando do que os especialistas
costumam chamar de sepultamento secundário — ou seja, o que
acontece quando, após um enterro inicial (ou “primário”), o
cadáver é desenterrado e recebe outro destino.
Em alguns lugares do mundo, como a Judeia
da época de Jesus, sepultamentos secundários são coisa simples:
desenterram-se os ossos do defunto, os quais passam por uma sessão
de limpeza, são acondicionados numa urna ou ossuário e levados de
volta à sepultura da família. Os paleoíndios da Lapa do Santo eram
muito mais imaginativos que os judeus do século I d.C., contudo. Ao
examinar a variedade de disposições dos restos mortais do abrigo,
catalogada pelo arqueólogo brasileiro André Strauss, do Instituto
Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, é difícil evitar
a impressão de que eles estavam fazendo instalações artísticas
pós-modernas com seus mortos.
Dentes de um indivíduo eram arrancados e
colocados cuidadosamente na boca de outro. Virado de cabeça para
baixo, um crânio servia como uma espécie de bacia dentro da qual
eram depositados os ossos de diversos outros indivíduos. Crânios de
adultos passavam a ser acompanhados por esqueletos pós-cranianos (ou
seja, do pescoço para baixo) de crianças e vice-versa (crânios
infantis, corpo de adulto). Corante ocre e carvão eram empregados
para dar um colorido especial aos conjuntos. Uma das descobertas
recentes de Strauss e seus colegas é a da mais antiga decapitação
do continente americano, provavelmente realizada depois da morte,
para alívio do dono da cabeça. O crânio foi encontrado numa
delicada composição com os ossos das mãos: a direita foi colocada
do lado esquerdo do crânio, com os dedos apontando para baixo, e a
mão esquerda foi disposta do lado direito, com os dedos voltados
para cima.
Não há como saber que significados os
moradores de Lagoa Santa atribuíam a esses sepultamentos
requintados. O certo, conforme aponta Strauss, é que algumas regras
de simetria simbólica parecem ter influenciado a disposição dos
mortos (como o par infância/velhice, por exemplo). Seria uma forma
de ressaltar a profunda unidade entre ancestrais e seus descendentes,
uma “dança da morte” que unia a todos?
Colocando as coisas nesses termos, parece
que o povo de Luzia era formado por sisudos filósofos da Idade da
Pedra. Talvez isso seja verdade, em parte, mas outra descoberta
surpreendente, debaixo do mesmo solo poeirento que recobria os
bizarros sepultamentos secundários, ajudou os arqueólogos a
enxergar os frequentadores da Lapa do Santo por um ângulo totalmente
diferente. E a culpa é toda do Taradinho.
“Taradinho” é o apelido dado por
Walter Neves e seus colegas à estranha figura gravada na rocha do
abrigo que é um dos mais antigos exemplares de arte rupestre do
nosso continente (a datação indireta sugere uma idade de 10,5 mil
anos). O que falta ao Taradinho em apuro artístico, ele compensa com
(como direi?) empolgação: o pênis ereto desenhado na gravura é
quase do tamanho das pernas do sujeito. A cabeça em forma de letra
C, as mãos com três dedos e a postura arreganhada sugerem que não
se trata de nenhuma forma ritualizada de arte, dedicada a celebrar as
glórias da fertilidade humana (hipótese sacada de modo quase
automático por arqueólogos quando qualquer alusão ao sexo aparece
em pinturas, gravuras ou esculturas primitivas). Não, gentil leitor,
é difícil tirar da cabeça a impressão de que o Taradinho é fruto
de alguma irreverência adolescente, de uma hora crepuscular sem
fazer nada, de alguém espremido entre a caverna e a mata.
Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral
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