Por que lhe deram esse nome de
maria-fumaça não sei. Nome de mulher, Maria. Certamente quem assim
a batizou deveria ser casado com uma Maria que tinha fogo nas
entranhas.
Por mais que eu explique, quem não ouviu
o seu apito rouco no meio da noite não entenderá. O apito rouco de
uma maria-fumaça é um punhal que atravessa a alma. Mas isso é
coisa que está além das palavras. É preciso ter ouvido para
entender. Os poetas bem que tentam. Pode ser que coisa dita não seja
entendida, mas o sentimento que mora nos vãos das palavras, esse
sentimento é sentido. A Adélia sentiu: “Um trem de ferro é
uma coisa mecânica mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida, virou só sentimento”. Mário Quintana
sentiu: “Nasci na Era da Fumaça trenzinho vagaroso com
vagarosas paradas em cada estaçãozinha pobre para comprar pastéis,
pés-de-moleque, sonhos — principalmente sonhos...” .
A maria-fumaça faz sofrer aqueles que
dela se lembram. Agora ela é só saudade de um tempo, o tempo quando
o seu apito era um choro solitário no meio da noite. As noites de
antigamente choravam. Agora os barulhos da noite são outros. O
Milton sentiu: “Maria-fumaça já não canta mais para nossas
casas, praças e quintais”.
O apito rouco da locomotiva era um grito
de despedida. Ela sabia... Apito triste. Pode um apito ser triste?
“Não há nada mais triste que o grito de um trem no silêncio
noturno”, disse Mário Quintana. “É a queixa de um
estranho animal perdido, único sobrevivente de alguma espécie
extinta, e que corre, corre, desesperado, noite afora, como para
escapar à sua orfandade e solidão de monstro...” O apito
começa grave e ia oitavando em gritos finos. Olhando para o porto,
Fernando Pessoa escreveu: “Todo cais é uma saudade de pedra”.
Digo eu: “Toda maria-fumaça é uma saudade de ferro e fogo”.
Pena que Villa-Lobos, de cuja música eu
muito gosto, não tenha entendido. Fez uma música sobre o trem e deu
a ela o nome de “O trenzinho do caipira”. Mas não era
“trenzinho”. Era enorme, negro, imponente, assustador. Depois,
não era do caipira. Era de todo mundo.
Manoel de Barros louvou “as latrinas
desprezadas que servem para ter grilos dentro” porque “elas
podem um dia milagrar violetas”. Pois eu louvo as marias-fumaça
abandonadas — elas podem um dia milagrar sabedoria. A maria-fumaça
ensina a sabedoria de Minas.
Meu pai, viajante, ficava feliz só de
estar viajando, sem pensar no destino. Ia baforando o seu cachimbo,
olhando para fora e imaginando grandes coisas que nunca aconteceriam.
Ele se alimentava dos seus sonhos. Depois dormia embalado pelo
sacolejo do trem.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Boa noite. Lamentando só agora ter tomado conhecimento da "RAPADURA CULT". Parabenizo pela página. FERROVIA É A ESTRADA DOS SONHOS, As coisas do passado tem gosto de saudade. Viagem de trem... Gostinho de lembranças! GRATIDÃO PELO SEU REGISTRO SEMPRE.
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