Para se abrigar da chuva, o herói entrou
no botequim e, entre dois conhaques, admirava-se de relance no
espelho. Seguindo a indicação do garçom, afastou a cortina viscosa
de franja, atravessou a cozinha, saiu no quintal: a primeira porta à
direita.
De volta, deparou à porta com a mulher
embalando uma criança no colo. Ia passar, quando ela falou:
– Seu mascarado, hein?
Rosto na sombra, de costas para a luz,
quem seria?
– Poxa, Elisa! Que fazendo aqui? Está
mais gorda.
E pensou: De quantos meses, hein?
– Eu cumprimento. O senhor nem olha,
não é?
– Desculpe. Não ouvi.
Havia meses trabalhava no botequim. Louca
por voltar, e o dinheiro da passagem? Saudosa do filhinho que deixou
com a mãe.
– Um senhor me convidou. Fazer vida
com ele em Curitiba.
– Você dá o filho para sua mãe. E
cuida de outro?
O bebê entendeu, abriu o berreiro.
– Espere aí. Vou pôr na cama.
Elisa cobriu a criança, atravessou
correndo o pátio. Cruzou por ela uma menina de uns nove anos, sem se
apressar na chuva. Passou de cabeça baixa por Nelsinho, entrou na
cozinha.
A bruta fera que, embora domesticada,
lambendo a mão ferida do dono, não resiste ao grito do sangue:
Elisa vinha para ele, olhava duro e sem piedade.
– Como vai de amores?
– Ninguém me quer.
Atraiu-a pelo braço e beijou-a. Elisa
tinha um dente partido, onde a pontinha da língua foi se alojar. A
mão empolgava o seio da moça ofegante.
– Só por que eu disse que ninguém me
quer? Olhava sem responder, já não tinha voz. Ela foi ver se havia
alguém na cozinha.
Nelsinho observou ao lado da casa mesas e
bancos ao ar livre, engradados de garrafas vazias.
A um canto, a mesa escondida pelo biombo.
E a cabeça louca trabalhando: Onde é que vai ser? Enxugou o óculo
na camisa.
Assim que a bela voltou, agarrou-a
debaixo da garoa.
– Vamos sentar, meu bem.
– Não vê que o banco está molhado?
– Então ache um lugar.
Frias réstias por entre as frinchas de
duas janelas iluminavam as poças. Elisa descobriu um saco enxuto de
estopa. Esfregou-o com força no banco, sentaram-se atrás do biombo.
Ele desabotoou-lhe a blusa, fez saltar o seio. A garoa umedecia a
nuca e a moça arrepiava-lhe os cabelos com dedo gorduroso.
– Podem dar pela minha falta.
– A que hora você sai?
– Moro aqui, seu bobo.
Em desespero o herói roía as unhas.
– A criança dormindo. Lá no quarto?
– Engraçadinho. E minha filha?
– Que filha?
– Ora, a que passou por aqui.
– Não sabia.
– Acho que ela desconfiou. Preciso
entrar, volto logo.
– Quanto tempo?
– Dez minutos.
O rapaz mordia-lhe a pontinha da orelha.
– Paciência, meu amor.
Elisa fechou a blusa, mas não se ergueu.
Tanto o marido a fizera infeliz, depois abrira asas. A falta do
filho, obrigada a deixá-lo com a mãe: ele chorava muito, era
despedida. Quem dera alguém a levasse para Curitiba. Nem carecia
levar, bastava pagar a passagem, dela e da filha.
– Olhe para lá.
Nelsinho virou o rosto, ela saiu
correndo. Ficou só onde é que podia ser? Entre as pilhas de
engradados lugar para duas pessoas em pé – ao abrigo, apesar da
lama.
O clarão de uma vela no pátio. Alguém
que buscava uma bebida qualquer? Encolheu-se atrás das caixas. A
menina – era a menina – passou, a mão em concha defendendo a
vela do vento. Sondou entre as mesas, foi até o portão e voltou –
sem apanhar garrafa nenhuma. Nelsinho girava à medida que ela
avançava ou se afastava.
Tão assustado, mordeu os berros do
coração. Não conseguiu abrir o portão: encurralado. Entre o muro
e a casa dois varais de pontas ameaçadoras. Ia ver o que era e
novamente a luz da vela.
Desta vez a menina dava a mão a uma
mulher, seria a patroa? Em pânico, o herói desejou sumir na lama.
Quem olhasse, enxergaria apenas uma barata, encolhida sob o pé que a
vai esmagar. Colou-se ao muro, invisível pelo milagre do seu
delírio.
Deixou-se ficar, a perna direita dobrada,
com o pé na parede, sem voltar a cabeça. Ela vê que estou bem
vestido, sou rapaz de família. Imóvel, debaixo da garoa, enquanto
as duas iam e vinham, espiando entre as pilhas de garrafas. A vela
iluminava todo o terreno, não podiam deixar de vê-lo – a não ser
que a mão do Senhor lhes apagasse os olhos. Fixando duro em frente
podia distinguir, ao clarão da vela, que as duas varas eram os pés
de um carrinho, voltado contra a parede.
Nem um reflexo bulia no óculo,
agachou-se no canto escuro, chorou baixinho - ah, com essa eu não
contava. Deus do céu, foi a última vez: gotas de vergonha escorriam
do queixo na preciosa gravata de bolinha.
Ouviu o chinelinho, mais que depressa
enxugou os olhos. A bela não o descobriu no esconderijo até que ele
se ergueu.
– O que está fazendo aí?
– Puxa, veio um mundo de gente.
– Quem é que veio? Alguém te viu?
– Tua filha e uma velha desgraçada.
Acho que tua patroa.
– Ela te viu ou não?
– É bem capaz.
– Pobrezinho. O coração pulando...
Sai da chuva, amor.
Outra vez procurando um lugar. Abraçados
cambalearam afundando os pés na poça. Debaixo do beirai, ela coube
entre os pés do carrinho sem a roda. A ponta da língua rolou no céu
da boca, recolheu-se na falha do dente.
Depois de se pentear, Nelsinho ajeitou a
onda na testa.
– Por onde eu saio? Ele na frente, ela
atrás.
– Fechado.
– Sei abrir.
O herói assobiava todo lampeiro. Elisa
gritou aflita:
– Quando te vejo? Acudiu sem se
voltar:
– Em Curitiba.
Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba
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