sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Dia 3 de Outubro

Ocorreu um fato estranho hoje. Eu me levantei bem tarde, e quando Mawra trouxe as minhas botas limpas, eu lhe perguntei quão tarde era. Quando escutei que já eram dez horas há tempos, me vesti o mais rápido possível.
Para dizer a verdade, eu preferiria nem ir ao escritório hoje, já sabendo que o nosso Escriturário Chefe estaria azedo como vinagre. Há algum tempo ele tem o hábito de me dizer, “Veja, amigo; há algo errado com a sua cabeça. Você vive correndo como um possuído. E você resume os documentos de uma forma tão confusa que nem o próprio diabo os entenderia; você escreve o título sem letras maiúsculas, e não coloca data ou o número da súmula.” Esse canalha de pernas finas! Certamente ele tem inveja de mim, por que eu me sento na mesma sala que o Diretor e aponto os lápis de Sua Excelência. Em resumo, eu não teria ido ao escritório senão na esperança de encontrar o contador e talvez espremer algum adiantamento do meu salário daquele mão de vaca.
Um homem terrível, esse contador! Se for para adiantar o salário de alguém vez ou outra – pode esperar o céu se abrir. Você pode implorar e suplicar para ele e estar à beira da ruína – esse canalha cinza não cede um centímetro. Enquanto isso, todo mundo sabe que ele toma uns sopapos da patroa em casa.
Eu realmente não entendo de que adianta servir no nosso departamento. Não há facilidades ali. Nos departamentos fiscal e judicial a coisa é bem diferente. Lá um sujeito deselegante senta-se em um canto e escreve e escreve; ele usa um casaco tão gasto e é tão feio que alguém cuspiria nos dois. Mas você precisa ver que casa de campo esplêndida que ele alugou. Ele não seria condescendente a ponto de aceitar uma xícara de porcelana trabalhada em ouro como um presente. “Você pode dar isso para o seu médico”, ele diria. Nada menos que um belo par de cavalos, uma fina carruagem ou um casaco de pele de castor de trezentos rublos seria bom o suficiente para ele. E mesmo assim pode se fazer de gentil e suave, pedindo amigavelmente “por favor, posso pegar seu estilete emprestado? Eu gostaria de apontar o meu lápis”. No entanto, ele sabe atormentar um cidadão até que mal lhe sobre a costura dos bolsos.
No nosso escritório tudo é feito da maneira apropriada e cavalheiresca; há mais limpeza e elegância do que jamais se verá em qualquer escritório do Governo. As mesas são de mogno e todos são tratados por “senhor”. E a bem dizer, não fosse por este maneirismo oficial, eu já teria entregado minha carta de demissão há tempos.
Eu vesti minha velha capa e peguei meu guarda-chuva, já que uma leve garoa estava caindo. Não havia ninguém na rua exceto umas mulheres cobrindo as cabeças com seus casacos. Aqui e ali se podia ver um cocheiro ou um vendedor com seu guarda-chuva. Da classe alta só havia um oficial aqui e ali. Um dos que eu vi em um cruzamento me fez pensar “Ah! Meu amigo, você não está indo ao trabalho, mas atrás dessa mocinha andando à sua frente. Você é como os outros oficiais que correm atrás de cada rabo de saia que veem”.
E enquanto eu seguia essa trilha de pensamentos, vi uma carruagem parar em frente a uma loja bem enquanto eu passava. Eu a reconheci imediatamente. Era a carruagem do nosso Diretor. “Ele não tem nada a fazer nessa loja”, eu disse para mim mesmo; “deve ser a filha dele”.
Encostei-me na parede. Um serviçal abriu a porta da carruagem, e, como eu esperava, ela saltitou para fora como um passarinho. Como ela olhou orgulha para a direita e para a esquerda; Como ela mexeu as sobrancelhas e atirou raios com os olhos – pelos céus! Eu estou perdido, desesperadamente perdido!
Mas por que ela teria que sair de casa com um clima tão abominável? E ainda dizem que as mulheres são loucas por manter a elegância!
Ela não me reconheceu. Eu tinha me enrolado em minha capa. Estava suja e era antiquada e eu não gostaria de ser visto por ela vestindo-a. Agora se usa capas com golas longas, mas a minha é uma dessas de colarinho duplo curto e o tecido é de qualidade inferior.
A cadelinha dela não pode entrar na loja e ficou do lado de fora. Eu conheço essa cadela; o nome dela é “Meggy”.
Antes que eu estivesse parado ali por um minuto, eu ouvi uma voz chamar “Bom dia, Meggy!”
Quem diabos disse isto? Eu olhei em volta e vi duas mulheres andando apressadas com guarda-chuvas – uma mais velha e a outra bem jovem. Elas já haviam passado por mim quando eu ouvi a mesma voz dizendo novamente “Que pena, Meggy!”
O que era isso? Eu vi a Meggy farejar uma outra cadela que foi atrás das mulheres. Diabos! Eu pensei “Será que eu estou bêbado? Pois acontece, às vezes.”
Não, Fidel, você está enganada” eu ouvi claramente a Meggy dizer. “Eu estava-au-au! Eu estava-au! au! au! muito doente.”
Mas que cadela extraordinária! Eu fiquei boquiaberto ao ouvir ela falar na linguagem humana. Mas após considerar melhor o fato, deixei de estar impressionado. Na verdade, essas coisas já ocorreram pelo mundo. Diz-se que na Inglaterra um peixe colocou a cabeça fora da água e disse uma palavra ou duas em uma linguagem tão extraordinária que homens estudados estão quebrando a cabeça há três anos e ainda não conseguiram interpretá-las. Eu também li no jornal que duas vacas entraram em uma loja e pediram meio quilo de chá.
Entretanto o que a Meggy disse em seguida me pareceu ainda mais notável. Ela continuou “Eu escrevi para você recentemente, Fidel; Talvez o Polkan não lhe tenha entregado as cartas.”
Ora, eu aposto um mês do meu salário se alguém já ouviu falar de cães escrevendo cartas antes. Eu certamente fiquei abismado. Durante esses momentos eu ouvi e vi coisas que nenhum outro homem ouviu ou viu.
Eu vou”, pensei, “seguir aquela cadela para chegar ao fundo disso”. Por conseguinte, abri o meu guarda-chuva e fui atrás das duas senhoras. Elas desceram a Rua do Feijão, viraram na Rua do Cidadão e na Rua do Carpinteiro, parando finalmente na Ponte do Cuco, de frente a um prédio. Eu conheço esse prédio; ele pertence ao Sverkoff. E que monstro ele é! Que tipo de gente vive ali! Cozinheiros e viajantes! Há também oficiais como eu, amontoados como sardinhas. E eu tenho um amigo morando ali, um ótimo tocador de corneta.
As senhoras subiram até o quinto andar. “Muito bem”, eu pensei; “Vou tomar nota do número da residência, para voltar e esclarecer a questão na primeira oportunidade”.

Nikolai Gogol, in Diário de um louco

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