Atendo o telefone e:
“Boa noite, é... Marcelo?”
“Quem é?”
“É você?”
“Quem está falando?”
“Puxa, que bom, eu precisava tanto
falar com você, não imagina o trabalhão que deu pra descolar o
seu...”
“Quer falar com quem?”
“Com você mesmo, Cariri.”
“Cariri?”
“Não era o teu apelido em Santos?”
“Como você sabe?”
“Pesquisei. Apelido louco. Por que te
deram esse apelido?”
“Olha, o que você quer?”
“Sou estudante e estou fazendo um
trabalho.”
“Como você descolou o meu telefone?”
“Desculpe, Cariri. A pessoa que me deu
pediu para não ser identificada. Você é uma figurinha difícil de
achar, hein? Marcelão, Marcelão... Como vão as coisas?”
“Indo.”
“O seu Corinthians, hein?”
“Meu e de muita gente.”
“E a Ana?”
“Ana?”
“A do livro.”
“Que livro?”
“Como ‘que livro’? O seu livro!”
“Qual deles?”
“Tem mais que um?”
“Tem alguns.”
“Caramba! Estou falando do primeiro.
Tinha a Ana, que namorava você na época da ditadura.”
“Ah. Não se chamava Ana. Nunca mais
vi.”
“Puxa, mas vocês eram tão...”
“Ligados? Mas isso faz tempo, era
ditadura ainda. Éramos adolescentes.”
“E a galera toda?”
“Qual?”
“A do livro?”
“Sei lá. Faz décadas isso.”
“A Bianca, a Gorda?”
“Cara, estes nomes são inventados.
Cada um foi para o seu lado. O mundo gira, a caravana passa.”
“Que caravana?”
“Deixa pra lá.”
“Pô, você é doidão, mesmo. Quanto
tempo você levou pra escrever?”
“O quê?”
“Como o quê? O Feliz Ano Passado?”
“Ah... Levei um ano.”
“Pô, e você ficou uma fera com aquela
enfermeira. Meu, rolei de rir naquela parte. Marcelão, que figura. A
gente tem que se conhecer, cara, temos muitas coisas em comum.”
“Sério?”
“Com certeza, pô, posso falar? Este
livro marcou uma época, tá ligado? Tipo assim, marcou uma geração,
certo?”
“Ouvi dizer.”
“Então, como vão as coisas?”
“Indo.”
“Pô, conta mais.”
“É que estou jantando.”
“Ah... Olha só. Eu preciso te
entrevistar, cara. Pro meu trabalho de TCC, tá ligado? Trabalho de
Conclusão de Curso.”
“Tô ligado.”
“Aí, vamos marcar?”
“Cara, não fica chateado, mas é a
quinta pessoa que liga nessa semana pedindo, e não vai dar. Fim de
ano, é sempre assim, um monte de estudantes liga, e tenho minha
rotina, eu trabalho muito, não é pessoal, vê se me entende.”
“Ah, não vai dizer que vai regular?”
“Cara, é muita gente, não dá pra
atender todos...”
“São só umas 25 perguntinhas.”
“Só?”
“Sobre a sua carreira, seus livros, as
influências, a ditadura, o seu pai, tortura, desaparecidos, esses
lances, a condição dos deficientes, os jovens no mundo de hoje, a
diferença entre os jovens da sua época e os de agora, fala do
Renato Russo, você era amigo dele, não era? Será só imaginação,
me amarro, cara, será que vamos conseguir vencer, será que é tudo
isso em vão, você conheceu o Cazuza? Como era, tipo assim, o
ambiente naquela época das passeatas dos estudantes? Nós vimos o
filme do Cazuza e debatemos na escola a aids e os anos 80, cara, aí,
você fala da importância dos livros para os jovens, de como fazer
os jovens lerem mais, compara a geração cara-pintada com a da
antiglobalização, Fórum Social, falta bandeiras, certo? O
Protocolo de Kioto tá aí! Viu os furacões? Os americanos têm que
assinar, tá ligado? Pô, deu na seca aqui da Amazônia. Posso mandar
as perguntas por e-mail, a gente fala dessa crise aí do PT, você tá
acompanhando, não tá? Você ainda curte política? Mó decepção...”
“Cara, não vai dar.”
“Pô, Cariri, você me pareceu um cara
legal pelos seus livros.”
“Olha, quando eu estudava, fiz um
trabalho enorme sobre lógica aristotélica. Aí, liguei pra Grécia,
pra falar com o Aristóteles? Não. Tive que me virar.”
“Que que tem a ver, cara?! Tu é doidão
mesmo, aí, ó! Tu fala grego, maluco?!”
“Fiz um trabalho sobre Kafka na escola.
Nunca pensei em ligar pra casa dele em Praga.”
“Por que não?”
“Porque ele morreu em 1924! O Machado
de Assis também morreu. Ninguém na escola ligaria pra casa dele na
hora do almoço ou jantar pra perguntar se Capitu era fiel ou não!”
“Calma aí, meu. Nem tinha telefone
naquela época.”
“Olha, vai à sua biblioteca ou use a
internet. Não precisa entrevistar o autor para fazer trabalhos.
Descobre você.”
“Quer dizer que depois da fama tu ficou
convencido. Desculpe aí, cara, foi mal. Nunca mais leio um livro
seu. Aí, ó, sabe quem morreu pra você? Eu. Tá se achando,
Cariri?!”
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
FIZ UMA PROVA E CAIU ESSE TEXTO COM A SEGUINTE
ResponderExcluirQuestão 14
Sobre a linguagem dos personagens no texto, é possível
afirmar que é menos formal, pois:
A) Eles têm intimidade.
B) Marcelo perde a paciência com o estudante.
C) Ambos utilizam uma linguagem com a presença de gírias.
D) O estudante se utiliza da informalidade, a fim de se aproximar
de Marcelo.
MARQUEI A LETRA D, MAS O GABARITO DISSE QUE É C. VC CONCORDA OU NÃO