Talvez você já tenha visto por aí a
célebre reconstrução artística da face de Luzia, um rosto que
lembra levemente o de outra celebridade bem mais recente, o do
lutador de MMA Anderson Silva. Sim, ela se parecia com o que hoje
chamaríamos de negro, típico da gente oriunda da África ao sul do
Saara.
Luzia ganhou essa aparência em 1999,
graças ao trabalho de Richard Neave, um britânico que é
antropólogo forense (um sujeito que consegue reconstruir as
características físicas que um defunto tinha em vida para ajudar a
polícia a solucionar crimes ou acidentes). Neave tomou como ponto de
partida o formato do crânio de Luzia em sua tarefa de recriar a
aparência da moça para um documentário da rede BBC sobre os
primeiros habitantes das Américas, mas está enganado quem pensar
que a ideia de retratá-la como “negra” (usando a palavra de um
jeito propositalmente vago e popular) surgiu com ele. Fazia mais de
um século que certos especialistas sentiam que havia algo de muito
peculiar no aspecto dos primeiros habitantes de Lagoa Santa.
Tudo começou com Peter Lund, um
naturalista dinamarquês que, no começo do reinado do então
imperador-menino Dom Pedro II, resolveu se mudar para um remoto
arraial de Minas Gerais, tornando-se caçador de fósseis em tempo
integral. Nas muitas cavernas calcárias da região, Lund desenterrou
uma lista interminável de bichos da Era do Gelo, batizando-os com
sonoros nomes em latim. Junto com os bichos, vieram fósseis de seres
humanos. Um dos debates científicos mais quentes da época envolvia
justamente a dúvida sobre a convivência do homem com essas espécies
extintas — lembre-se de que estamos falando da era pré-Darwin,
antes que a teoria da evolução tivesse sido formulada e aceita,
quando até cientistas de renome aderiam, em linhas gerais, ao relato
bíblico sobre a criação dos seres vivos e propunham que os
monstros da Era Glacial teriam integrado uma “criação anterior”,
destruída por catástrofes similares ao Dilúvio relatado na Bíblia.
Além de detectar uma provável convivência entre pessoas como nós
e a megafauna do passado, Lund notara, já em 1842, que a gente de
Lagoa Santa se caracterizava por ter crânios estreitos e faces
projetadas para a frente (um traço que os bioantropólogos designam
com o termo “prognatismo”). São essas, em linhas gerais, as
características de povos como os africanos que vivem ao sul do
Saara.
No total, Lund exumou 17 crânios em
Lagoa Santa, mas suas ideias sobre a aparência peculiar desses
primeiros habitantes do Brasil foram sendo progressivamente
esquecidas. No século seguinte, diversas outras expedições
científicas escarafuncharam o solo do interior mineiro, com graus
variados de capricho científico e sucesso, até a criação da
Missão Arqueológica Franco-Brasileira, uma parceria entre governo
brasileiro e governo da França. Capitaneada por Annette
Laming-Emperaire, a equipe de arqueólogos trabalhava no abrigo
rochoso batizado de Lapa Vermelha IV quando, a 11 metros de
profundidade, deparou-se com uma coleção de cacos de um esqueleto
humano, o qual, em vida, pertencera a uma mulher jovem. O crânio, em
especial, rolara mais para o fundo da gruta. Usando técnicas
indiretas de datação — por meio da análise de fragmentos de
carvão associados aos restos mortais, por exemplo —, os
pesquisadores estimaram que a moça morrera há 12 mil anos. Não há
sinais de que ela tenha sido enterrada com as devidas honras fúnebres
em Lapa Vermelha IV. É possível que seu corpo tenha sido
simplesmente jogado lá dentro por um grupo de pessoas que se
deslocava pela região naquele momento. Nesse caso, ela teria
morrido, provavelmente de causas naturais, durante uma viagem de sua
tribo, um fato possivelmente comum na vida de caçadores-coletores,
gente cuja vida tem como marca a grande mobilidade, ao menos pelo que
sabemos a respeito de grupos similares que ainda existem hoje.
Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral
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