terça-feira, 31 de agosto de 2021

Um rosto inesquecível

 


Talvez você já tenha visto por aí a célebre reconstrução artística da face de Luzia, um rosto que lembra levemente o de outra celebridade bem mais recente, o do lutador de MMA Anderson Silva. Sim, ela se parecia com o que hoje chamaríamos de negro, típico da gente oriunda da África ao sul do Saara.
Luzia ganhou essa aparência em 1999, graças ao trabalho de Richard Neave, um britânico que é antropólogo forense (um sujeito que consegue reconstruir as características físicas que um defunto tinha em vida para ajudar a polícia a solucionar crimes ou acidentes). Neave tomou como ponto de partida o formato do crânio de Luzia em sua tarefa de recriar a aparência da moça para um documentário da rede BBC sobre os primeiros habitantes das Américas, mas está enganado quem pensar que a ideia de retratá-la como “negra” (usando a palavra de um jeito propositalmente vago e popular) surgiu com ele. Fazia mais de um século que certos especialistas sentiam que havia algo de muito peculiar no aspecto dos primeiros habitantes de Lagoa Santa.
Tudo começou com Peter Lund, um naturalista dinamarquês que, no começo do reinado do então imperador-menino Dom Pedro II, resolveu se mudar para um remoto arraial de Minas Gerais, tornando-se caçador de fósseis em tempo integral. Nas muitas cavernas calcárias da região, Lund desenterrou uma lista interminável de bichos da Era do Gelo, batizando-os com sonoros nomes em latim. Junto com os bichos, vieram fósseis de seres humanos. Um dos debates científicos mais quentes da época envolvia justamente a dúvida sobre a convivência do homem com essas espécies extintas — lembre-se de que estamos falando da era pré-Darwin, antes que a teoria da evolução tivesse sido formulada e aceita, quando até cientistas de renome aderiam, em linhas gerais, ao relato bíblico sobre a criação dos seres vivos e propunham que os monstros da Era Glacial teriam integrado uma “criação anterior”, destruída por catástrofes similares ao Dilúvio relatado na Bíblia. Além de detectar uma provável convivência entre pessoas como nós e a megafauna do passado, Lund notara, já em 1842, que a gente de Lagoa Santa se caracterizava por ter crânios estreitos e faces projetadas para a frente (um traço que os bioantropólogos designam com o termo “prognatismo”). São essas, em linhas gerais, as características de povos como os africanos que vivem ao sul do Saara.
No total, Lund exumou 17 crânios em Lagoa Santa, mas suas ideias sobre a aparência peculiar desses primeiros habitantes do Brasil foram sendo progressivamente esquecidas. No século seguinte, diversas outras expedições científicas escarafuncharam o solo do interior mineiro, com graus variados de capricho científico e sucesso, até a criação da Missão Arqueológica Franco-Brasileira, uma parceria entre governo brasileiro e governo da França. Capitaneada por Annette Laming-Emperaire, a equipe de arqueólogos trabalhava no abrigo rochoso batizado de Lapa Vermelha IV quando, a 11 metros de profundidade, deparou-se com uma coleção de cacos de um esqueleto humano, o qual, em vida, pertencera a uma mulher jovem. O crânio, em especial, rolara mais para o fundo da gruta. Usando técnicas indiretas de datação — por meio da análise de fragmentos de carvão associados aos restos mortais, por exemplo —, os pesquisadores estimaram que a moça morrera há 12 mil anos. Não há sinais de que ela tenha sido enterrada com as devidas honras fúnebres em Lapa Vermelha IV. É possível que seu corpo tenha sido simplesmente jogado lá dentro por um grupo de pessoas que se deslocava pela região naquele momento. Nesse caso, ela teria morrido, provavelmente de causas naturais, durante uma viagem de sua tribo, um fato possivelmente comum na vida de caçadores-coletores, gente cuja vida tem como marca a grande mobilidade, ao menos pelo que sabemos a respeito de grupos similares que ainda existem hoje.

Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral

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