Bibiana e Severo retornaram com seus
quatro filhos para a fazenda, alguns anos depois. No intervalo desse
tempo, vieram para as festas de fim de ano e de São Sebastião com
certa frequência. Numa dessas visitas batizei dois de seus filhos,
como havia prometido: Inácio, o mais velho, que havia crescido e
tinha quase minha altura; e Maria, a terceira. Domingas batizou a
segunda, Flora, e Zezé também foi escolhido padrinho dela. Santa,
filha de Tonha, batizou Ana, a caçula, que havia recebido o nome de
nossa avó, e que já havia completado três anos. Minha mãe havia
viajado para fazer o parto da segunda, e também acompanhou Bibiana
no hospital no parto das duas últimas. O ano do regresso foi o ano
em que chegou a primeira televisão à fazenda. Ela havia sido dada a
Damião por um dos filhos, que trabalhava na cidade. Era uma
televisão em preto e branco com uma caixa cinza, com antenas que mal
serviam e uma esponja de aço na ponta. No começo, víamos mais os
chuviscos do que qualquer imagem. Depois chegou a primeira antena
parabólica, “um prato grande virado para as estrelas”, Damião
disse a meu pai, numa de suas visitas ao jarê. Recordo da cara de
espanto e riso do povo de Água Negra, conhecíamos a televisão de
andarmos pela cidade e por outros lugares, mas nunca havíamos tido
uma por ali. Chegou antes da energia elétrica, e na casa de Damião
a faziam funcionar com uma bateria de veículo antiga, que precisava
ser recarregada sempre. Ou seja, assistíamos uma novela por quinze
dias e passávamos mais quinze sem ver nada, até que alguém da
família fosse à cidade levando o peso da bateria. A partir de
então, o povo passou a se reunir na casa à noite; quando acabava a
bateria ouvíamos queixa na roça, na feira e em todo canto, até que
retornassem com ela carregada de novo. Até mesmo Sutério vinha,
mancando, de vez em quando, “para espiar”, como dizia. Formava
uma aglomeração de gente conversando, outros pedindo silêncio.
Outras pessoas começaram a se debruçar na janela porque não havia
mais lugar nem no chão da sala. Bibiana disse que quando tivéssemos
energia elétrica compraria uma para nossos pais.
Antes do retorno de minha irmã, havíamos
passado por novos tempos de cheia e estiagem. Aos poucos, a paisagem
foi mudando também. As grandes roças que os homens trabalhavam
foram reduzidas, ano a ano. A família Peixoto já não tinha
interesse em produzir. Um dos irmãos, que ficava à frente do
trabalho instruindo Sutério, havia falecido. Já tinha a idade
avançada e os filhos pareciam não ter interesse de continuar
cuidando da fazenda. As estiagens tinham sido duras, não se plantava
mais arroz, eles diziam que faltava dinheiro para comprar adubo e
sementes. As únicas coisas que vicejavam eram as nossas roças na
vazante, os marimbus, a televisão de Damião e as brincadeiras de
jarê. Meu pai estava envelhecendo, se encurvando com o tempo, os
cabelos ficando brancos de forma lenta, mas ainda trabalhava de
domingo a domingo. Não falava em parar. Ele e outros trabalhadores
pioneiros que chegaram nos primeiros anos à Água Negra estavam se
aposentando. Foram orientados pelo próprio Sutério a requerer o
benefício – ele mesmo sem registro de trabalho, confessou –, o
que era de muita ajuda e mudava em parte a situação dos moradores.
Passaram cópia do documento do imposto da terra de mão em mão para
que os mais velhos pudessem ter o que nunca tiveram, como se todo
tempo de espera e trabalho tivessem sido para este momento
derradeiro, quando iriam receber seus parcos recursos no banco da
cidade. Era como se, passado tanto tempo trabalhando sem qualquer
remuneração, agora entendessem que tinham direito a receber um
ordenado todo mês. Continuavam a trabalhar nos seus roçados, a
cultivar seus alimentos, muitos continuavam a montar banca na feira
da cidade, mas não existiam mais as empreitadas fatigantes que
retiraram a saúde de muitos e que significavam a servidão dos
antigos, dos avós e bisavós, a sujeição que gostariam de poder
esquecer.
Apesar das mudanças lentas, muitas
interdições impostas pelos fazendeiros ainda continuavam a valer. O
dinheiro não era usado para melhoria das casas que continuavam a ser
de barro, continuávamos sem poder construir casa de alvenaria. Mas o
povo começou a melhorar o seu interior: colchões de espuma para
substituir os colchões de palha de milho, uma cama, mesa e cadeiras,
remédios, roupas e alimentos. Panelas e colchas que os ciganos
vendiam de tempos em tempos em nossas portas.
Bibiana havia se formado professora,
falava diferente, bonito, via o orgulho de meu pai ao vê-la ensinar
aos filhos. Dizia que queria a filha professora da escola de Água
Negra. Que falaria com o prefeito numa festa de jarê para que desse
o cargo de professora à filha, se assim fosse possível. Ela e
Severo construíram uma casa perto de nossos pais, como a maioria
costumava fazer quando casava e não seguia para outros rumos. Eu
continuei a morar perto do rio Santo Antônio, mas passava os finais
de semana entre eles. Gostava de estar com as crianças, de escutar
Severo sobre nossa situação na fazenda. Aprendia coisas novas. Meu
primo continuava a deixar a fazenda para reuniões do sindicato, de
movimentos, para congressos. Gostava de sua companhia, mas guardava
certa distância porque sentia que minha irmã tinha ciúmes do
marido, mesmo de mim. Ou talvez eu tenha ficado com essa impressão
ao ver seus olhos crisparem quando alguma mulher, atraída pelo
discurso de Severo, pela sabedoria que ele emanava, deslumbrada
diante de sua oratória e do sorriso, que parecia ser do mesmo menino
que havia me encantado e havia me feito querer ser como ele na minha
mocidade.
Quando Severo viajava para encontrar o
povo que lhe ensinava as coisas, sobre a precariedade do trabalho,
sobre o sofrimento do povo do campo, eu dormia na casa de Bibiana
para lhe fazer companhia. Inácio, meu afilhado, já era menino
crescido, tinha corpo de homem, gostava de me ajudar a plantar no
quintal de casa. Ele mesmo tomava a enxada da minha mão ou da mão
da mãe, cavava cova, fazia coivara, com nossa vigília. Tinha o
mesmo interesse pelos livros da mãe e do pai. Maria, minha outra
afilhada, era traquina, vivia surpreendendo a todos. Se pendurava nos
umbuzeiros e cajueiros, sumia nos matos. No dia em que caiu e quebrou
o braço, me lembrei da Rural que nos levou para o hospital na
infância que se distanciava, mas que em momentos como esse retornava
como um sonho. Minha mãe olhava para a neta e dizia “essa teve a
quem puxar, nunca vou me esquecer do que vocês me fizeram passar,
correndo para o hospital”. Bibiana ficava aflita, mas eu ria em
silêncio, pensava como era engraçado poder ver a vida se repetir
como uma história antiga. Meu pai se juntava a Bibiana na
preocupação, dizia para que não castigasse a menina, que ela tinha
os Cosmes que ele não quis cuidar. Por isso nós duas tínhamos
sofrido na infância, porque ele não quis cuidar do São Cosme e
Damião, ou, quando cuidava, fazia com malgrado. Ficava contrariado
quando incorporava os santos, quando agia como criança, quando subia
nas árvores ou pulava as janelas, e se fosse o telhado da casa de
cerâmica teria corrido por cima dela como um menino irrequieto.
O ano do retorno da filha foi a última
vez em que meu pai e minha mãe viajaram para os festejos de Bom
Jesus da Lapa, terra de Salu, em caminhada e romaria, promessa feita
por ocasião da partida de Bibiana e Severo, para que retornassem à
fazenda. Só soubemos da promessa quando se aproximou agosto e eles
partiram a pé até seu destino, com moradores de Água Negra e
fazendas vizinhas. A romaria também era para agradecer a chuva,
ainda que cada vez mais parca. Por isso, muitos moradores,
principalmente os mais antigos, partiram naquela viagem. Caminharam
por dezessete dias, ida e volta, e todos nós nos sentimos aflitos
com a segurança dos romeiros, principalmente Bibiana, sentindo-se
culpada pelo fardo da promessa, temendo que algo ocorresse e ela
levasse a culpa pelo resto da vida. Mas retornaram bem, queimados de
sol, cansados, no entanto revigorados, como sempre acontecia após
uma viagem às terras do Bom Jesus, agradecendo ao santo pela
romaria, por terem pernas e saúde para caminhar. Voltaram, como
sempre, carregados de graça, com imagens, terços e promessas.
Voltaram mais velhos na carne, com dores que os acompanharam por
semanas, anos, talvez por toda a vida, mas os olhos reluziam como o
lume de uma vela, e isso bastava para sabermos que era o que devia
ser feito.
Mas depois dessa viagem meu pai nunca
mais foi o mesmo. Suas forças foram declinando. Talvez a força
despendida numa caminhada tão longa como aquela fosse demais para
sua idade. Minha mãe retornou com o corpo abatido, mas Zeca Chapéu
Grande voltou muito mais fraco. Sentir o sol no caminho do asfalto,
entre rezas e encantos, reviver a caminhada que o trouxe à Água
Negra, talvez a emoção de ver o santo, filhos e netos à sua volta,
houvesse preparado seu corpo para a partida.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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