sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Torto Arado | 14

Bibiana e Severo retornaram com seus quatro filhos para a fazenda, alguns anos depois. No intervalo desse tempo, vieram para as festas de fim de ano e de São Sebastião com certa frequência. Numa dessas visitas batizei dois de seus filhos, como havia prometido: Inácio, o mais velho, que havia crescido e tinha quase minha altura; e Maria, a terceira. Domingas batizou a segunda, Flora, e Zezé também foi escolhido padrinho dela. Santa, filha de Tonha, batizou Ana, a caçula, que havia recebido o nome de nossa avó, e que já havia completado três anos. Minha mãe havia viajado para fazer o parto da segunda, e também acompanhou Bibiana no hospital no parto das duas últimas. O ano do regresso foi o ano em que chegou a primeira televisão à fazenda. Ela havia sido dada a Damião por um dos filhos, que trabalhava na cidade. Era uma televisão em preto e branco com uma caixa cinza, com antenas que mal serviam e uma esponja de aço na ponta. No começo, víamos mais os chuviscos do que qualquer imagem. Depois chegou a primeira antena parabólica, “um prato grande virado para as estrelas”, Damião disse a meu pai, numa de suas visitas ao jarê. Recordo da cara de espanto e riso do povo de Água Negra, conhecíamos a televisão de andarmos pela cidade e por outros lugares, mas nunca havíamos tido uma por ali. Chegou antes da energia elétrica, e na casa de Damião a faziam funcionar com uma bateria de veículo antiga, que precisava ser recarregada sempre. Ou seja, assistíamos uma novela por quinze dias e passávamos mais quinze sem ver nada, até que alguém da família fosse à cidade levando o peso da bateria. A partir de então, o povo passou a se reunir na casa à noite; quando acabava a bateria ouvíamos queixa na roça, na feira e em todo canto, até que retornassem com ela carregada de novo. Até mesmo Sutério vinha, mancando, de vez em quando, “para espiar”, como dizia. Formava uma aglomeração de gente conversando, outros pedindo silêncio. Outras pessoas começaram a se debruçar na janela porque não havia mais lugar nem no chão da sala. Bibiana disse que quando tivéssemos energia elétrica compraria uma para nossos pais.
Antes do retorno de minha irmã, havíamos passado por novos tempos de cheia e estiagem. Aos poucos, a paisagem foi mudando também. As grandes roças que os homens trabalhavam foram reduzidas, ano a ano. A família Peixoto já não tinha interesse em produzir. Um dos irmãos, que ficava à frente do trabalho instruindo Sutério, havia falecido. Já tinha a idade avançada e os filhos pareciam não ter interesse de continuar cuidando da fazenda. As estiagens tinham sido duras, não se plantava mais arroz, eles diziam que faltava dinheiro para comprar adubo e sementes. As únicas coisas que vicejavam eram as nossas roças na vazante, os marimbus, a televisão de Damião e as brincadeiras de jarê. Meu pai estava envelhecendo, se encurvando com o tempo, os cabelos ficando brancos de forma lenta, mas ainda trabalhava de domingo a domingo. Não falava em parar. Ele e outros trabalhadores pioneiros que chegaram nos primeiros anos à Água Negra estavam se aposentando. Foram orientados pelo próprio Sutério a requerer o benefício – ele mesmo sem registro de trabalho, confessou –, o que era de muita ajuda e mudava em parte a situação dos moradores. Passaram cópia do documento do imposto da terra de mão em mão para que os mais velhos pudessem ter o que nunca tiveram, como se todo tempo de espera e trabalho tivessem sido para este momento derradeiro, quando iriam receber seus parcos recursos no banco da cidade. Era como se, passado tanto tempo trabalhando sem qualquer remuneração, agora entendessem que tinham direito a receber um ordenado todo mês. Continuavam a trabalhar nos seus roçados, a cultivar seus alimentos, muitos continuavam a montar banca na feira da cidade, mas não existiam mais as empreitadas fatigantes que retiraram a saúde de muitos e que significavam a servidão dos antigos, dos avós e bisavós, a sujeição que gostariam de poder esquecer.
Apesar das mudanças lentas, muitas interdições impostas pelos fazendeiros ainda continuavam a valer. O dinheiro não era usado para melhoria das casas que continuavam a ser de barro, continuávamos sem poder construir casa de alvenaria. Mas o povo começou a melhorar o seu interior: colchões de espuma para substituir os colchões de palha de milho, uma cama, mesa e cadeiras, remédios, roupas e alimentos. Panelas e colchas que os ciganos vendiam de tempos em tempos em nossas portas.
Bibiana havia se formado professora, falava diferente, bonito, via o orgulho de meu pai ao vê-la ensinar aos filhos. Dizia que queria a filha professora da escola de Água Negra. Que falaria com o prefeito numa festa de jarê para que desse o cargo de professora à filha, se assim fosse possível. Ela e Severo construíram uma casa perto de nossos pais, como a maioria costumava fazer quando casava e não seguia para outros rumos. Eu continuei a morar perto do rio Santo Antônio, mas passava os finais de semana entre eles. Gostava de estar com as crianças, de escutar Severo sobre nossa situação na fazenda. Aprendia coisas novas. Meu primo continuava a deixar a fazenda para reuniões do sindicato, de movimentos, para congressos. Gostava de sua companhia, mas guardava certa distância porque sentia que minha irmã tinha ciúmes do marido, mesmo de mim. Ou talvez eu tenha ficado com essa impressão ao ver seus olhos crisparem quando alguma mulher, atraída pelo discurso de Severo, pela sabedoria que ele emanava, deslumbrada diante de sua oratória e do sorriso, que parecia ser do mesmo menino que havia me encantado e havia me feito querer ser como ele na minha mocidade.
Quando Severo viajava para encontrar o povo que lhe ensinava as coisas, sobre a precariedade do trabalho, sobre o sofrimento do povo do campo, eu dormia na casa de Bibiana para lhe fazer companhia. Inácio, meu afilhado, já era menino crescido, tinha corpo de homem, gostava de me ajudar a plantar no quintal de casa. Ele mesmo tomava a enxada da minha mão ou da mão da mãe, cavava cova, fazia coivara, com nossa vigília. Tinha o mesmo interesse pelos livros da mãe e do pai. Maria, minha outra afilhada, era traquina, vivia surpreendendo a todos. Se pendurava nos umbuzeiros e cajueiros, sumia nos matos. No dia em que caiu e quebrou o braço, me lembrei da Rural que nos levou para o hospital na infância que se distanciava, mas que em momentos como esse retornava como um sonho. Minha mãe olhava para a neta e dizia “essa teve a quem puxar, nunca vou me esquecer do que vocês me fizeram passar, correndo para o hospital”. Bibiana ficava aflita, mas eu ria em silêncio, pensava como era engraçado poder ver a vida se repetir como uma história antiga. Meu pai se juntava a Bibiana na preocupação, dizia para que não castigasse a menina, que ela tinha os Cosmes que ele não quis cuidar. Por isso nós duas tínhamos sofrido na infância, porque ele não quis cuidar do São Cosme e Damião, ou, quando cuidava, fazia com malgrado. Ficava contrariado quando incorporava os santos, quando agia como criança, quando subia nas árvores ou pulava as janelas, e se fosse o telhado da casa de cerâmica teria corrido por cima dela como um menino irrequieto.
O ano do retorno da filha foi a última vez em que meu pai e minha mãe viajaram para os festejos de Bom Jesus da Lapa, terra de Salu, em caminhada e romaria, promessa feita por ocasião da partida de Bibiana e Severo, para que retornassem à fazenda. Só soubemos da promessa quando se aproximou agosto e eles partiram a pé até seu destino, com moradores de Água Negra e fazendas vizinhas. A romaria também era para agradecer a chuva, ainda que cada vez mais parca. Por isso, muitos moradores, principalmente os mais antigos, partiram naquela viagem. Caminharam por dezessete dias, ida e volta, e todos nós nos sentimos aflitos com a segurança dos romeiros, principalmente Bibiana, sentindo-se culpada pelo fardo da promessa, temendo que algo ocorresse e ela levasse a culpa pelo resto da vida. Mas retornaram bem, queimados de sol, cansados, no entanto revigorados, como sempre acontecia após uma viagem às terras do Bom Jesus, agradecendo ao santo pela romaria, por terem pernas e saúde para caminhar. Voltaram, como sempre, carregados de graça, com imagens, terços e promessas. Voltaram mais velhos na carne, com dores que os acompanharam por semanas, anos, talvez por toda a vida, mas os olhos reluziam como o lume de uma vela, e isso bastava para sabermos que era o que devia ser feito.
Mas depois dessa viagem meu pai nunca mais foi o mesmo. Suas forças foram declinando. Talvez a força despendida numa caminhada tão longa como aquela fosse demais para sua idade. Minha mãe retornou com o corpo abatido, mas Zeca Chapéu Grande voltou muito mais fraco. Sentir o sol no caminho do asfalto, entre rezas e encantos, reviver a caminhada que o trouxe à Água Negra, talvez a emoção de ver o santo, filhos e netos à sua volta, houvesse preparado seu corpo para a partida.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Nenhum comentário:

Postar um comentário