Menos de uma semana depois, um dos filhos
de Maria foi me encontrar enquanto limpava a roça. Disse que o pai
estava louco, batendo de novo na mãe. Fiz sinal para que o menino
esperasse. Passei em casa para pegar o que precisava. Aproveitei e
coloquei aipim e banana na sacola, pedi ajuda para carregar o peso.
Não tirei a calça que vestia, suja de terra, nem a camisa de manga
comprida que quase havia esquecido ter sido de Tobias. Cheguei à
casa de Maria Cabocla como quem não queria nada, e a certa distância
pude ouvir o choro ecoando pela trilha em que caminhava a passos
rápidos. Bati na porta que já se encontrava aberta, mas avisando
que alguém iria entrar. Aparecido parou para me observar, estava
confiante na covardia dos homens que ouviam o desespero daquela
mulher e nada faziam. Entrei como se a casa fosse minha, apoiei os
alimentos na mesa da cozinha, reuni as crianças desesperadas. Limpei
seus rostos com um pedaço de tecido que estava num canto do fogão.
O homem gritou para que fosse embora, que
cuidasse da minha vida. Não olhei em nenhum momento para Maria, que
estava no quarto aos soluços. Se ela tivesse visto minha cabeça
veria que ainda preservava as tranças que havia feito uma semana
antes, e nos meus olhos tudo que advinha daquele gesto íntimo.
Permaneci em pé, desafiando para que viesse ele próprio me arrancar
para fora, porque não sairia com minhas próprias pernas. Ouvi de
sua boca que respeitava muito meu pai, que era seu compadre, mas que
não iria admitir desacato em sua própria casa. Maria levantou de
onde estava, veio para cima dele, mas foi lançada em seguida ao chão
por um tapa desferido com as costas da mão desproporcional do homem.
Eram mãos engrossadas pelo trabalho, pela vida nada fácil. Meus
olhos cresceram ferozes ao ver Maria no chão, que parecia não se
acovardar àquela hora, dizendo que eu iria ficar. Quando ele veio
para cima para tentar me retirar dali à força, meu coração estava
aos pulos, sentia meu interior frio como a brisa da madrugada, mas
permaneci firme como meus antepassados. Não foi o suficiente para
evitar que Aparecido apertasse meu punho e tentasse me arrastar para
fora. Encostei a lâmina que escondia atrás de mim em seu queixo,
olhando segura para seus olhos vermelhos e com veias que se
espantaram ao ver minha reação. Estava em minha mão direita, com o
cabo fresco como um seixo recém-tirado do rio. Maria parecia
sobressaltada com a visão que tinha, mas não hesitou em pedir que
Aparecido fosse embora de novo. Correu para o quarto para fazer uma
pequena trouxa e voltou gritando que não iria mais apanhar, que ele
fosse de uma vez e a deixasse com os meninos, que se virariam. A faca
encostou de tal maneira no seu queixo que quase vi o momento em que o
laceraria.
Seus olhos vermelhos de fúria amansaram
como os de uma criança acuada pelo medo de uma aparição da mata.
Aparecido chorou pedindo perdão, dizendo que ele não era de fazer
isso, que a bebida era uma desgraça em sua vida. Maria Cabocla
aproveitou a fragilidade que ele transparecia para afastá-lo de vez.
Mostrava as marcas do corpo, as que pareciam estar curadas, as que
não curaram e as daquele instante. Sua raiva dizia muito das dores
da alma – e sobre estas ela não falou –, aquelas que demoram a
curar, as que no meio das lembranças precisamos afastar com um gesto
de negação para que não se abata sobre nós o desânimo. Dizia que
não queria mais ver o marido naquele pedaço de chão. Duas das
crianças mais novas choraram quando a mãe atirou as roupas pela
porta, pedindo “não, mainha, não manda painho embora”. Maria,
conquanto parecesse não ouvir ninguém, continuava a gritar para que
o homem se fosse, que os deixasse de uma vez, para a casa das putas
com quem ele deitava. Ele gritava entre lágrimas que a casa era
dele, ele havia levantado, ele que havia pedido abrigo. A mulher
parecia firme, e eu apoiava a sua resolução.
Depois que ele seguiu cambaleando pela
trilha, arrumamos a casa e alimentamos as crianças. Tive vontade de
cuidar de Maria Cabocla, de lavar suas feridas, de dar-lhe de comer,
mas ela disse que estava tudo bem e me agradeceu com um gesto
sincero. Fui embora com um aperto, pensando no homem vagando pela
estrada. Pensei também em Maria com aquela ruma de filhos para
cuidar e alimentar. O que haveria de ser dela? E se a mandassem
embora da fazenda? E se o marido fosse ele mesmo falar com Sutério?
Dormi com essas coisas martelando na moleira, pensando em Maria
machucada, sozinha, com vontade de lhe agradar, de pentear seus
cabelos dessa vez, fazer uma trança se o brilho oleoso, que
desprendia dele, deixasse.
Passei a levar aipim e batata, a safra
estava boa, era a minha desculpa para justificar a frequência com
que a visitava toda semana. De fato, não me fazia falta e aqui era
assim desde o princípio, uma mão lavava a outra. Afinal, nossos
pais e esse povo de Maria Cabocla, e tantos outros, chegaram de
lugares diferentes e distantes, mas, passado tanto tempo, viviam como
uma parentela de filhos de pegação, de compadre, comadre, vizinho,
marido e mulher, cunhados, primos e inimigos. Muitos haviam casado
entre si e eram parentes de verdade, nos laços e no sangue. Os que
não, eram de consideração. Então, o coração mandava dividir o
que tínhamos e por isso sobrevivíamos nas piores dificuldades.
Semanas depois, soube que Aparecido havia
retornado. Senti tristeza, mas pensei “se é pai dos meninos dela
tem de haver algum perdão”. Quem sabe o homem não muda? Ou, quem
sabe, o gostar de Maria seja maior que as diferenças que existem
entre eles. No fundo, será que ela percebeu que poderia ser pior
estar sozinha na terra com aquele tanto de filhos, sem condições de
roçar e dar de comer a todo mundo? Talvez tenha sido por isso, pela
vergonha de ter me chamado, naquele dia em que o enfrentei com a
valentia que corria em meu sangue, que Maria se afastou de mim. Foi
mudando com o tempo, se tornando mais tristonha, mais sozinha do que
era. Se me encontrava, cumprimentava, mas já não se detinha a falar
da vida, das mazelas que sofria, das pancadas do marido, das
dificuldades para colocar comida na mesa. Eu também, para não
magoar sem querer, nem mesmo ofender, deixei de levar as coisas que
plantava e que fui trabalhando com minha força.
Quanta gente foi adentrando na solidão
de meu rancho e foi dizendo que era uma roça bonita, que era maior e
mais bem cuidada que a roça de muitos homens? Se admiravam quando
viam que trabalhava sozinha. Com os olhos, mediam meu corpo de cima a
baixo, se pudessem me fariam disputar uma queda de braço com os
homens, só para saber se a força para revirar a terra, para
trabalhar o chão, vinha dele mesmo. Para ter certeza de que não era
das forças dos encantados em que o povo acreditava. Sutério passava
rigorosamente toda semana e levava o que podia. Mas não deixava
levar o melhor, como meu pai fazia por gratidão. Separava os legumes
maiores para a casa, para meus pais. Só não deixava apodrecer nos
pés, de desgosto, porque achava um desrespeito com a própria terra.
Mas se desse para dar aos animais, eu dava, só para não deixar que
ele levasse meu suor, minhas dores nas costas, meus calos nas mãos e
minhas feridas nos pés, como se fosse algo seu.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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