Os contos de Maldoror são no fundo um
grande folhetim. Não nos esqueçamos que Isidor Ducasse tomou seu
pseudônimo de uma novela do folhetinísta Eugene Sue, Lautréamont,
escrita em Chatenay em 1837. Mas Lautréamont, segundo se sabe, foi
muito mais longe que Lautréamont. Desceu muito mais, quis ser
infernal. E muito mais alto, um arcanjo maldito. Maldoror, na
grandeza da desgraça, celebra o “Matrimônio do Céu e do
Inferno”. A fúria, os ditirambos e a agonia formam as ondas
envolventes da retórica ducassiana. Maldoror: Maldolor.
Lautréamont projetou uma nova etapa,
renegou seu rosto sombrio e escreveu o prólogo de uma nova poesia
otimista que não conseguiu criar. A morte em Paris levou o jovem
uruguaio. Mas essa prometida mudança de sua poesia, este movimento
em direção à bondade e ao que é saudável, que não conseguiu
cumprir, suscitou muitas críticas. Celebram-no em seu sofrimento e
condenam sua transição para a alegria. O poeta deve se torturar e
sofrer, deve viver desesperado, deve continuar escrevendo a canção
desesperada. Esta tem sido a opinião de uma camada social, de uma
classe. Esta fórmula lapidar foi obedecida por muitos que se
dobraram ao sofrimento imposto por leis não escritas, porém não
menos lapidares. Estes decretos invisíveis condenavam o poeta ao
tugúrio, aos sapatos rotos, ao hospital e à morgue. Todo o mundo
ficava assim contente: a festa continuava com muito poucas lágrimas.
As coisas mudaram porque o mundo mudou. E
nós os poetas, inopinadamente, encabeçamos a rebelião da alegria.
O escritor desventurado, o escritor crucificado, faz parte do ritual
da felicidade no crepúsculo do capitalismo. A tendência do gosto
foi habilmente canalizada para exaltar a desgraça como fermento da
grande criação. A má conduta e o padecimento foram considerados
fórmulas na elaboração poética. Hölderlin, lunático e
desgraçado, Rimbaud, errante e amargo, Gérard de Nerval,
enforcando-se num poste de um beco miserável, deram ao fim do século
não só o paroxismo da beleza mas também o caminho dos tormentos. O
dogma era que este caminho de espinhos devia ser a condição
inerente da produção espiritual.
Dylan Thomas foi o último do
martirológio dirigido.
O estranho é que estas ideias da antiga
e severa burguesia continuam vigentes em alguns espíritos, espíritos
que não captam a pulsação do mundo no nariz, que é onde se deve
captá-lo, porque o nariz do mundo fareja o futuro.
Existem críticos cucurbitáceos, cujos
guias e marcas buscam o último grito da moda com terror de perdê-lo.
Mas suas raízes continuam mergulhadas no passado.
Nós, os poetas, temos o direito de ser
felizes, uma vez que estamos ferreamente unidos a nossos povos e à
luta pela felicidade.
“Pablo é um dos poucos homens felizes
que conheci”, disse Ilya Ehrenburg em um de seus trabalhos. Esse
Pablo sou eu e Ehrenburg não se engana.
Por isso não estranho que esclarecidos
ensaístas semanais se preocupem com meu bem-estar material, ainda
que a vida particular não devesse ser objeto da crítica. Compreendo
que a provável felicidade ofende a muitos. Mas o caso é que não
sou feliz por dentro. Tenho uma consciência tranquila e uma
inteligência intranquila.
Aos críticos que parecem reprovar nos
poetas um nível melhor de vida, eu os convidaria a se mostrarem
orgulhosos de que os livros de poesia são impressos, são vendidos e
cumprem sua missão de preocupar a crítica, a celebrarem que os
direitos autorais sejam pagos e que alguns autores pelo menos possam
viver de seu santo trabalho. Este orgulho o crítico deve proclamar e
não cuspir no prato em que come.
Por isso quando li há pouco os
parágrafos dedicados a mim por um crítico jovem, brilhante e
eclesiástico, não por ser brilhante me pareceu menos equivocado.
Segundo ele, minha poesia se ressentia de
ser feliz. Receitava-me a dor. De acordo com esta teoria, uma
apendicite produziria excelente prosa e uma peritonite, possivelmente
cantos sublimes.
Continuo trabalhando com os materiais que
tenho e com o que sou. Sou onívoro de sentimentos, de seres, de
livros, de acontecimentos e lutas. Comeria toda a terra. Beberia todo
o mar.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi
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