quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Os críticos devem sofrer

Os contos de Maldoror são no fundo um grande folhetim. Não nos esqueçamos que Isidor Ducasse tomou seu pseudônimo de uma novela do folhetinísta Eugene Sue, Lautréamont, escrita em Chatenay em 1837. Mas Lautréamont, segundo se sabe, foi muito mais longe que Lautréamont. Desceu muito mais, quis ser infernal. E muito mais alto, um arcanjo maldito. Maldoror, na grandeza da desgraça, celebra o “Matrimônio do Céu e do Inferno”. A fúria, os ditirambos e a agonia formam as ondas envolventes da retórica ducassiana. Maldoror: Maldolor.
Lautréamont projetou uma nova etapa, renegou seu rosto sombrio e escreveu o prólogo de uma nova poesia otimista que não conseguiu criar. A morte em Paris levou o jovem uruguaio. Mas essa prometida mudança de sua poesia, este movimento em direção à bondade e ao que é saudável, que não conseguiu cumprir, suscitou muitas críticas. Celebram-no em seu sofrimento e condenam sua transição para a alegria. O poeta deve se torturar e sofrer, deve viver desesperado, deve continuar escrevendo a canção desesperada. Esta tem sido a opinião de uma camada social, de uma classe. Esta fórmula lapidar foi obedecida por muitos que se dobraram ao sofrimento imposto por leis não escritas, porém não menos lapidares. Estes decretos invisíveis condenavam o poeta ao tugúrio, aos sapatos rotos, ao hospital e à morgue. Todo o mundo ficava assim contente: a festa continuava com muito poucas lágrimas.
As coisas mudaram porque o mundo mudou. E nós os poetas, inopinadamente, encabeçamos a rebelião da alegria. O escritor desventurado, o escritor crucificado, faz parte do ritual da felicidade no crepúsculo do capitalismo. A tendência do gosto foi habilmente canalizada para exaltar a desgraça como fermento da grande criação. A má conduta e o padecimento foram considerados fórmulas na elaboração poética. Hölderlin, lunático e desgraçado, Rimbaud, errante e amargo, Gérard de Nerval, enforcando-se num poste de um beco miserável, deram ao fim do século não só o paroxismo da beleza mas também o caminho dos tormentos. O dogma era que este caminho de espinhos devia ser a condição inerente da produção espiritual.
Dylan Thomas foi o último do martirológio dirigido.
O estranho é que estas ideias da antiga e severa burguesia continuam vigentes em alguns espíritos, espíritos que não captam a pulsação do mundo no nariz, que é onde se deve captá-lo, porque o nariz do mundo fareja o futuro.
Existem críticos cucurbitáceos, cujos guias e marcas buscam o último grito da moda com terror de perdê-lo. Mas suas raízes continuam mergulhadas no passado.

Nós, os poetas, temos o direito de ser felizes, uma vez que estamos ferreamente unidos a nossos povos e à luta pela felicidade.
Pablo é um dos poucos homens felizes que conheci”, disse Ilya Ehrenburg em um de seus trabalhos. Esse Pablo sou eu e Ehrenburg não se engana.
Por isso não estranho que esclarecidos ensaístas semanais se preocupem com meu bem-estar material, ainda que a vida particular não devesse ser objeto da crítica. Compreendo que a provável felicidade ofende a muitos. Mas o caso é que não sou feliz por dentro. Tenho uma consciência tranquila e uma inteligência intranquila.
Aos críticos que parecem reprovar nos poetas um nível melhor de vida, eu os convidaria a se mostrarem orgulhosos de que os livros de poesia são impressos, são vendidos e cumprem sua missão de preocupar a crítica, a celebrarem que os direitos autorais sejam pagos e que alguns autores pelo menos possam viver de seu santo trabalho. Este orgulho o crítico deve proclamar e não cuspir no prato em que come.
Por isso quando li há pouco os parágrafos dedicados a mim por um crítico jovem, brilhante e eclesiástico, não por ser brilhante me pareceu menos equivocado.
Segundo ele, minha poesia se ressentia de ser feliz. Receitava-me a dor. De acordo com esta teoria, uma apendicite produziria excelente prosa e uma peritonite, possivelmente cantos sublimes.
Continuo trabalhando com os materiais que tenho e com o que sou. Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas. Comeria toda a terra. Beberia todo o mar.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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