quinta-feira, 12 de agosto de 2021

O homem sem janela

Uns fecham portadas,
e se encerram na paisagem.

Outros habitam quimeras,
extintos magmas interiores.

Eu vivo apenas fora de mim.

De longe
me chegam palavras
e nenhuma cabe
no oco da minha mão.
Apenas de outros me faço eu.

Espreito a rua
e, através de mim,
não vejo senão gente
que nasce sem sonhos e vive sem vida.

Sou o homem sem janela:
o mundo está sempre do lado de cá.

A meu lado
não mora ninguém:
meus vizinhos
habitam todos dentro de mim.

Ao fim da tarde,
porém, o céu se curva
para afagar o meu teto.

Em redondo dorso de cão,
a meus pés se enrosca a solidão.

É então que chegas,
e eu, enfim, regresso
para dentro de minhas paredes.

Só então tenho janela.

Mia Couto

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