Mesmo vencendo todos os obstáculos que
acompanham a pele não branca e ingressando na pós-graduação, o
estudante encontrará outro desafio: o epistemicídio, isto é, o
apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por
grupos oprimidos. A renomada feminista negra Sueli Carneiro traduziu
epistemicídio, conceito originalmente proposto pelo sociólogo
português Boaventura Sousa Santos, em sua tese de doutorado da
seguinte forma:
Alia-se nesse processo de banimento
social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo
para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho
educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os
racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de
aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É
fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o racismo e
a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos
negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da
desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do
continente africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural
da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela
produção do fracasso e evasão escolar. A esse processo denominamos
epistemicídio.
Os sinais de apagamento da produção
negra são evidentes. É raro que as bibliografias dos cursos
indiquem mulheres ou pessoas negras; mais raro ainda é que indiquem
a produção de mulheres negras, cuja presença no debate
universitário e intelectual é extremamente apagada. Durante os
quatro anos de minha graduação em filosofia, não me sugeriram a
leitura de nenhuma autora branca, que dirá negra. A gravidade disso
está exemplificada por Abdias do Nascimento em O genocídio do negro
brasileiro, no qual afirma que genocídio é toda forma de
aniquilação de um povo, seja moral, cultural ou epistemológica.
Por nossa posição no arranjo geopolítico global, a produção de
intelectuais negras brasileiras tende a ser muito menos difundida do
que a de países como os Estados Unidos, causando atraso em debates
que poderiam estar muito mais avançados.
Um belo exemplo de feminista negra
brasileira é Lélia Gonzalez, atuante nas décadas de 1970 e 1980 e
professora do curso de sociologia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, que encantou plateias com o poder
transformador de suas palavras. As propostas de Lélia para pensar a
“amefricanidade”, propondo um feminismo afro-latino-americano, se
perpetuam até hoje ao se propor uma luta transnacional.
O apagamento da produção e dos saberes
negros e anticoloniais contribui significativamente para a pobreza do
debate público, seja na academia, na mídia ou em palanques
políticos. Se somos a maioria da população, nossas elaborações
devem ser lidas, debatidas e citadas.
A importância de estudar autores negros
não se baseia numa visão essencialista, ou seja, na crença de que
devem ser lidos apenas por serem negros. A questão é que é
irrealista que numa sociedade como a nossa, de maioria negra, somente
um grupo domine a formulação do saber. É possível acreditar que
pessoas negras não elaborem o mundo? É sobre isso que a escritora
Chimamanda Ngozi Adichie alerta ao falar do perigo da história
única. O privilégio social resulta no privilégio epistêmico, que
deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas
pelo ponto de vista do poder. É danoso que, numa sociedade, as
pessoas não conheçam a história dos povos que a construíram.
Para escrever este pequeno manual, me
inspirei em textos e livros de diversos autores e intelectuais
negros, que cito com reverência—as obras mencionadas estão nas
referências bibliográficas, ao final deste livro. Leia: Abdias do
Nascimento, Adilson Moreira, Alessandra Devulsky, Angela Davis, Audre
Lorde, bell hooks, Carla Akotirene, Chimamanda Ngozi Adichie, Cida
Bento, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Grada Kilomba, Joel Zito
Araújo, Joice Berth, Juliana Borges, Kabengele Munanga, Lélia
Gonzalez, Letícia Carolina Pereira do Nascimento, Luciana Boiteux,
Michelle Alexander, Neusa Santos Sousa, Rodney William Eugênio,
Silvio Almeida, Sueli Carneiro. Há tantos outros: Clóvis Moura,
Fernanda Felisberto, Nilma Lino Gomes, impossível citar todos. E
muitos mais que não conheço ainda.
As construções sobre raça se dão de
forma singular e complexa nas diferentes regiões do país. Por isso,
precisamos conhecer a produção de mulheres negras de fora das
grandes metrópoles—como Nilma Bentes, Zélia Amador e Marcela
Bonfim—e ampliar as nossas visões de mundo. Procure conhecer o
trabalho realizado por núcleos de estudos afro-brasileiros em
universidades, valorize editoras que publicam produções
intelectuais negras e apoie iniciativas que têm como objetivo a
visibilidade de pensamentos de coloniais. Precisamos ir além do que
já conhecemos.
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
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