quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Leia autores negros

Mesmo vencendo todos os obstáculos que acompanham a pele não branca e ingressando na pós-graduação, o estudante encontrará outro desafio: o epistemicídio, isto é, o apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos. A renomada feminista negra Sueli Carneiro traduziu epistemicídio, conceito originalmente proposto pelo sociólogo português Boaventura Sousa Santos, em sua tese de doutorado da seguinte forma:

Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do continente africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esse processo denominamos epistemicídio.

Os sinais de apagamento da produção negra são evidentes. É raro que as bibliografias dos cursos indiquem mulheres ou pessoas negras; mais raro ainda é que indiquem a produção de mulheres negras, cuja presença no debate universitário e intelectual é extremamente apagada. Durante os quatro anos de minha graduação em filosofia, não me sugeriram a leitura de nenhuma autora branca, que dirá negra. A gravidade disso está exemplificada por Abdias do Nascimento em O genocídio do negro brasileiro, no qual afirma que genocídio é toda forma de aniquilação de um povo, seja moral, cultural ou epistemológica. Por nossa posição no arranjo geopolítico global, a produção de intelectuais negras brasileiras tende a ser muito menos difundida do que a de países como os Estados Unidos, causando atraso em debates que poderiam estar muito mais avançados.
Um belo exemplo de feminista negra brasileira é Lélia Gonzalez, atuante nas décadas de 1970 e 1980 e professora do curso de sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que encantou plateias com o poder transformador de suas palavras. As propostas de Lélia para pensar a “amefricanidade”, propondo um feminismo afro-latino-americano, se perpetuam até hoje ao se propor uma luta transnacional.
O apagamento da produção e dos saberes negros e anticoloniais contribui significativamente para a pobreza do debate público, seja na academia, na mídia ou em palanques políticos. Se somos a maioria da população, nossas elaborações devem ser lidas, debatidas e citadas.
A importância de estudar autores negros não se baseia numa visão essencialista, ou seja, na crença de que devem ser lidos apenas por serem negros. A questão é que é irrealista que numa sociedade como a nossa, de maioria negra, somente um grupo domine a formulação do saber. É possível acreditar que pessoas negras não elaborem o mundo? É sobre isso que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie alerta ao falar do perigo da história única. O privilégio social resulta no privilégio epistêmico, que deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas pelo ponto de vista do poder. É danoso que, numa sociedade, as pessoas não conheçam a história dos povos que a construíram.
Para escrever este pequeno manual, me inspirei em textos e livros de diversos autores e intelectuais negros, que cito com reverência—as obras mencionadas estão nas referências bibliográficas, ao final deste livro. Leia: Abdias do Nascimento, Adilson Moreira, Alessandra Devulsky, Angela Davis, Audre Lorde, bell hooks, Carla Akotirene, Chimamanda Ngozi Adichie, Cida Bento, Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Grada Kilomba, Joel Zito Araújo, Joice Berth, Juliana Borges, Kabengele Munanga, Lélia Gonzalez, Letícia Carolina Pereira do Nascimento, Luciana Boiteux, Michelle Alexander, Neusa Santos Sousa, Rodney William Eugênio, Silvio Almeida, Sueli Carneiro. Há tantos outros: Clóvis Moura, Fernanda Felisberto, Nilma Lino Gomes, impossível citar todos. E muitos mais que não conheço ainda.
As construções sobre raça se dão de forma singular e complexa nas diferentes regiões do país. Por isso, precisamos conhecer a produção de mulheres negras de fora das grandes metrópoles—como Nilma Bentes, Zélia Amador e Marcela Bonfim—e ampliar as nossas visões de mundo. Procure conhecer o trabalho realizado por núcleos de estudos afro-brasileiros em universidades, valorize editoras que publicam produções intelectuais negras e apoie iniciativas que têm como objetivo a visibilidade de pensamentos de coloniais. Precisamos ir além do que já conhecemos.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

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