Eram dez e meia da noite e eu ia saindo
de casa quando o menino me abordou. Por um instante pensei que pedia
dinheiro. Cheguei a lhe estender uma nota, ele pareceu surpreendido
mas aceitou.
Usava uma camisa velha e esburacada do
Botafogo. O calção deixava à mostra as perninhas finas que mal se
sustinham nos pés descalços. Era moreno, com aquela tonalidade
encardida que a pobreza tem. Segurava uma pequena caixa de papelão
já meio desmantelada.
– Que é mesmo que você pediu? Não
foi dinheiro?
– Uma coberta.
– Uma coberta? Para quê?
– Pra eu dormir.
Realmente estava frio, mas onde ele
queria que eu arranjasse uma coberta? O jeito era voltar em casa,
descobrir uma coberta velha, trazer para ele.
Foi o que fiz: apanhei uma colcha já
usada mas ainda de serventia e lhe trouxe. Ele aceitou com
naturalidade, sem me olhar nos olhos. Não parecia ter mais de nove
anos, mas me disse que já tinha 13.
– Onde é que você dorme?
– Num lugar ali – e fez um gesto vago
para os lados da praça General Osório.
– Dorme sempre na rua? Não tem casa?
– Tenho.
– Onde?
– Em Austin.
– Onde fica isso? É longe daqui?
– Não é não. Fica no estado do Rio.
– Por que você não vai pra casa?
Ele mordeu o lábio inferior, calado um
instante, mas acabou respondendo:
– Mamãe me expulsou.
– Por quê? Alguma você andou fazendo.
– Não fiz nada não – reagiu ele, de
súbito veemente. – Minha irmã é nervosa, quebrou o vidro da
televisão e disse que fui eu. Então minha mãe me expulsou.
– Quando foi isso?
– Tem quase três anos.
– Três anos? E você nunca mais
voltou?
– Voltei não.
– Como é que você viveu esse tempo
todo? Que é que você come?
– Peço resto de comida.
– Para que serve esse papelão?
– Pra cobrir o chão de dormir.
– Você tem algum amigo?
– Não gosto de amigo não. Amigo faz
trapalhada e a gente é que acaba preso.
O nome dele era Carlos Henrique.
– Volta pra casa, Carlos Henrique.
E fiz uma pequena pregação: mãe é
sempre mãe, ela devia estar sentindo falta dele. Melhor em casa que
ficar por aí na rua, sem ter onde dormir. A mãe trabalhava em Nova
Iguaçu, ele me havia dito, devia viver da mão para a boca, mas
ainda era para ele a melhor solução. Não tinha nem nunca teve pai.
– Você sabe ir até lá?
– Sei. Vou de ônibus até a Central e
lá pego o trem até Austin.
– Então vai mesmo, hein?
Ele prometeu ir assim que o dia
clareasse. Para isso dei-lhe mais algum dinheiro e ele se afastou,
com sua colcha e seus pedaços de papelão, esgueirando-se pelos
cantos como um ratinho.
Não acredito que tenha ido. Certamente
continuará rolando por aí mesmo, mais dia menos dia transformado em
pivete, se exercitando na prática de pequenos furtos, em que, pelo
jeito, ainda não se iniciou.
E se por acaso voltarmos a nos encontrar
daqui a uns poucos anos, não me resta nem a esperança de que me
reconheça e não me mate – pois seguramente e com justas razões
já terá se tornado assaltante.
Quando este texto foi publicado, recebi
carta de uma “fã e leitora assídua” criticando, em termos
delicados mas discretamente agressivos, meu comportamento em relação
ao menino: “uma atitude denunciadora do óbvio, pois todos nós
estamos cansados de saber que menores abandonados serão futuros
pivetes...”. E me interpelava: “Por que só arguições,
dinheiro, conselhos que não serão seguidos? Por que não uma
atitude mais concreta? Afinal, você pertence a nossa intelligentsia,
tem acesso a todas as camadas sociais e políticas. Por que não usar
do seu prestígio para conseguir um colégio, um orfanato, enfim, um
lugar para acolher esse ser carente, não só de coberta, mas
sobretudo de Amor?”.
Depois de informar que ela própria já
havia ajudado alguns garotos, encaminhando-os a orfanatos, creches,
empregos, através de seus conhecimentos pessoais, encerrava a carta
afirmando que “jamais deixaria uma criança esgueirar-se como um
ratinho, tendo nas mãos apenas uma colcha e não uma Esperança”.
Em resposta, enviei-lhe uma carta,
concordando integralmente com suas palavras e reconhecendo nada me
haver ocorrido no momento senão escrever sobre o menino, como era de
meu ofício, e fazer do episódio uma denúncia da ordem social
iníqua em que vivemos. Eventualmente poderia servir também para
tocar consciências sensíveis como a dela, provocando-lhe o generoso
impulso de me escrever para despertar a minha que, sem dúvida, devia
andar mesmo meio adormecida. Por isso agradecia sua carta, franca e
oportuna, certamente um estímulo para procurar dali por diante
seguir o seu exemplo.
Posso
não ter seguido – mas voltando aqui ao assunto, alertando outras
consciências, pelo menos continuo cumprindo humildemente a minha
tarefa como escritor.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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