segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Favorzinho

Começo explicando que era páscoa, época na qual somos tomados por um espírito fraterno. O fato era que o marido da prima de um amigo (reparem bem na proximidade) veio de Viseu a Lisboa para fazer uma entrega que não deu certo. E eu me solidarizei, dizendo que faria a entrega durante a semana.
Pois bem. Eram fertilizantes de solo para serem entregues no Instituto Superior de Agronomia, no bairro da Ajuda. Segunda-feira almocei uma maravilhosa omelete de nada, escolha favorita de pessoas que precisam entrar num vestido de noiva, e peguei o carro para fazer a entrega. Coisa simples, dez minutos para ir, dez para voltar.
Me perdi. Rodei, rodei. Encontrei a portaria. Era a portaria errada. Fui procurar a outra. Me perdi. Dez minutos já eram 25. Cheguei. O segurança explicou tranquilamente: era só ir reto até o edifício amarelo, contorná-lo, entrar na segunda à direita, subir até encontrar uma rua enviesada, virar, seguir adiante, passar pelos edifícios brancos, virar à direita nas vinhas (sim, vinhas, de uva), seguir, encontrar uma rotatória, virar à esquerda, subir e pronto, era lá. Sorri com cara de imbecil, segui com o carro e me perdi na terceira coordenada.
Acenei para um carro de uma empresa de obras e pedi ajuda. O rapaz, muito solícito, disse para segui-lo. Andamos uns dez minutos, até que chegamos ao laboratório. O rapaz desceu do carro e me deu um cartão escrito “trabalhos verticais e impermeabilizações”. Eu agradeci e disse que se precisasse de algo o procuraria. Ele sorriu e disse “Era mais para tomarmos um café qualquer dia”, piscando o olho. Voltei para minha cara de imbecil e respondi: “Ah. Tá. Brigada.”
Estacionei e peguei a caixa, que era bem mais pesada do que eu imaginava. Deparei com uma escadaria sem fim. Respirei e subi. Ao chegar lá em cima, quase falecida, li o cartaz “usar a entrada de baixo”. Coisas de Portugal. Comecei a descer. Quando estava no meio da escada uma senhora me chamou lá em cima, dizendo que eu podia entrar por ali. Subi de novo. Agradeci e disse que tinha uma entrega de fertilizantes. Ela disse “Ah, mas isso é lá embaixo”. Viu meus olhos tristes e disse “Mas pode vir cá por dentro”.
Comecei a descer a escada com a caixa nos braços e percebi que minhas calças estavam caindo. Foi a maior alegria do dia, sinal de que a omelete de nada tem servido para alguma coisa além de me entristecer. Na sala, fui recebida por uma simpática senhora quadrada – mesma medida de altura e largura – com um avental branco. Ela me perguntou “São substratos vegetais?”, respondi que não sabia de nada, que nem tinha aberto a caixa, que fazia um favor para um amigo de Viseu. Ela foi chamar a responsável. Fiquei ouvindo o rádio velho berrando BUT I SEE YOUR TRUUUE COOOLORS SHINING THROUGH. A responsável chegou e me perguntou se os formulários estavam preenchidos. Eu sorri e repeti que não sabia de nada.
Entrou um homem. Me perguntou – TRUE COLORS, TRUE COLORS – se também havia amostra de terra na caixa. Fiquei com vontade de rir. Disse que não sabia. Chegou a quarta senhora – THAT’S WHY I LOOOVE YOU – me perguntando se era para análise de metais pesados. Não aguentei. Caí numa crise de riso, pedi desculpas – TRUE COLORS –, tentei explicar de novo, comecei a lacrimejar pelo canto do olho, “É só um favor... pra um amigo” e ria, ria.
Só conseguia pensar no ridículo daquela odisseia que se instaurou na tentativa de fazer um favorzinho. Era surreal. Seguiram-se mais 15 minutos de debates. Que raio eu fazia ali? Tanto trabalho em casa. No fim, me comunicaram que não analisavam aqueles tipos de substratos. Suspirei. Deixei a caixa, o telefone do homem e fui embora. Entrei no carro e comecei a rir de novo. Duas horas para nada. Ou não: às vezes o fracasso vira texto.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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