quarta-feira, 11 de agosto de 2021

— Deus existe, ou não?

           Os dias diminuíam, a luz baixava rapidamente, o coração se angustiava em cada tarde. Revivia-se o terror primitivo dos ancestrais que viam nos meses de inverno o sol apagar-se um pouco mais cedo a cada dia. “Amanhã ele se apagará por completo”, pensavam desesperados, e passavam a noite inteira nas montanhas a tremer.
Zorba sofria essa inquietação mais profundamente e mais primitivamente do que eu. Para escapar dela, não saía das galerias subterrâneas senão quando as estrelas já se haviam acendido no céu.
Ele havia encontrado um bom veio de linhita, sem muitas cinzas, pouco úmido, rico em calorias e estava contente. Pois, instantaneamente, o lucro sofria em sua imaginação transformações maravilhosas — e virava viagens, mulheres e novas aventuras.
Esperava com impaciência o dia em que tivesse o bastante, em que suas asas fossem bem grandes — asas era como ele chamava o dinheiro — para voar. Passava também noites inteiras a experimentar seu minúsculo teleférico, procurando a inclinação precisa para que os troncos descessem lentamente, dizia ele, como se transportados por anjos.
Um dia apanhou uma longa folha de papel, lápis de cor e desenhou a montanha, a floresta, o teleférico e os troncos suspensos no cabo, cada um deles dotado de duas grandes asas azul-cerúleo.
Na pequena baía arredondada, ele desenhou navios negros com marinheiros verdes como pequenos papagaios e traineiras transportando troncos de árvores amarelos. Quatro monges estavam nos quatro cantos, e de suas bocas saíam fitas cor-de-rosa com maiúsculas negras: “Ó Senhor, como tu és grande e como são admiráveis tuas obras!”
Já há alguns dias, Zorba acendia o fogo às pressas, preparava o jantar, comíamos e ele disparava pelo caminho da aldeia. Mais tarde voltava, de testa franzida.
Onde você foi, Zorba? — eu lhe perguntava.
A lugar nenhum, patrão — respondia; e mudava de assunto.
Uma noite, ao voltar, ele me perguntou ansiosamente:
Deus existe, ou não? Que acha você, patrão? E se ele existe… tudo é possível... como você acha que ele é?
Sacudi os ombros sem responder.
Eu... não ria patrão... acho que é igual a mim. Só que maior, mais forte, mais alucinado. E por cima de tudo, imortal. Está confortavelmente sentado em peles de carneiro bem macias, e seu barracão é o céu. Não é de velhos galões de gasolina, como o nosso, mas de nuvens. Na sua mão direita não segura uma espada ou uma balança — esses instrumentos são para açougueiros e quitandeiros — ele segura uma esponja cheia de água, como uma nuvem de chuva. À sua direita é o paraíso, e à esquerda é o inferno. Quando chega uma alma, pobrezinha, toda nua, pois perdeu seu corpo, tremendo, Deus olha para ela rindo dentro de sua barba, mas fingindo zanga: “Venha cá, diz ele engrossando sua voz, venha cá, maldita!” ele começa assim o interrogatório. A alma se joga aos pés de Deus. “Perdão! Ela grita. Perdoe-me!” e eis que ela se põe a desfiar seus pecados. Já fez uma ladainha e isso não acaba. Deus já está farto. Boceja. “Cale-se, diz a ela, você está me cansando!” e de um golpe só, apaga com a esponja todos os pecados. “Ufa! Raspe-se, vá logo para o paraíso! Ele diz. Pedro, manda entrar à próxima, coitadinha!” pois fique sabendo patrão, Deus é um grão-senhor, e a nobreza é isso: perdoar!
Nessa noite, eu me lembro, enquanto Zorba desovava essas teorias profundas, eu ria. Mas, essa “nobreza” de Deus tomava corpo e amadurecia em mim, compassiva, generosa e toda-poderosa.
Uma outra noite em que chovia e estávamos enfiados em nosso barracão, ocupados em assar castanhas no braseiro, Zorba dirigiu seu olhar para mim e olhou-me durante algum tempo como se quisesse elucidar algum grande mistério. Por fim, não se conteve.
Eu queria saber, patrão — disse ele, — o que você acha de mim. O que você espera para me pegar pelas orelhas e pôr para fora? Já disse que me chamam Míldio, porque por toda parte onde anda não deixo pedra sobre pedra... os teus negócios vão para o Diabo! Enxote-me, é o conselho que lhe dou!
Você me agrada — respondi. — não espere mais que isso.
Você não compreende, patrão, que eu tenho o miolo mole! Tenho algum miolo, mas certamente ele é meio mole! Por exemplo, você vai compreender: de uns tempos para cá, durante dias e noites, a viúva não me deixa tranquilo. Não por mim, não, eu juro. Comigo já está resolvido, não irei tocá-la. Ela não é para o meu bico, que o Diabo a carregue. Mas eu também não quero que ela fique perdida para todo mundo. Não quero que ela durma sozinha. É uma pena, patrão, eu não posso suportar isso. Então, eu fico rodando em volta do jardim dela durante a noite. sabe para que? Para ver se alguém vai dormir com ela e eu poder me tranquilizar!
Comecei a rir.
Não ria, patrão! Se uma mulher dorme sozinha, é culpa nossa, dos homens. Teremos todos nós que dar conta disse no dia do juízo final. Deus perdoa todos os pecados, como disse, ele está com a esponja na mão, mas esse pecado ele não perdoa. Infeliz do homem que poderia dormir com uma mulher e não o fez, patrão! Infeliz da mulher que poderia dormir com um homem e não o faz! Lembre-se do que dizia o hodja.
Ele calou-se um instante, e bruscamente:
Quando um homem morre, ele pode voltar a terra sob outra forma? — perguntou.
Eu não acredito que possa, Zorba.
Eu também não. Mas, se pudesse, então esses homens de que falei, esses que recusaram servir, digamos, os desertores do amor, eles voltariam a terra como o que? Como mulas!
Calou-se de novo e refletiu. Subitamente seus olhos faiscaram.
Quem sabe — disse ele excitado com sua descoberta, — talvez essas mulas que vemos hoje no mundo sejam esse tipo de gente, os desertores, que durante a vida foram homens e mulheres sem o ser, e é por isso que viraram mulas. É por isso também que eles escoiceiam o tempo todo. Que acha você, patrão?
Que o seu miolo é certamente mais mole do que devia, Zorba — respondi sorrindo. — levante-se e pegue o seu santuri.
Nada de santuri essa noite, patrão. Por favor, não se zangue. Eu falo, falo, digo bobagens, sabe por quê? Por que tenho grandes preocupações. Grandes amolações. A nova galeria, ela vai me dar trabalho. E você a me falar do santuri...
Dito isso, ele tirou as castanhas das cinzas, deu-me um punhado e encheu nossos copos com raki.
Que Deus nos ajude! — disse eu, tocando nossos corpos.
Que Deus nos ajude — repetiu Zorba, — se você quer... mas, até agora, isso deu em nada.
Tomou de um gole o fogo líquido e se estendeu em sua cama.
Amanhã — disse, — precisarei de toda a minha força. Terei que lutar contra mil demônios. Boa noite!

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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