Túmulo de Abelardo e Heloísa em Paris
Era outono. O vento já havia tocado as
árvores com seus dedos frios, colorindo as folhas de amarelo e
vermelho. Ao lado direito, um muro alto de pedras que quase não se
viam, cobertas que estavam por uma hera de folhas vermelho-escuras,
em forma de coração. Colhi cinco folhas e as coloquei dentro de
guardanapos de papel, para desidratá-las.
A importância daquelas folhas, para mim,
não era estética – embora fossem bonitas, eram comuns. Eu as
colhi por terem crescido naquele lugar, a abadia de Cluny. Caminhei
em silêncio por seus corredores, pátios e jardins porque, para mim,
havia alguma coisa de sagrado ali. Caminhava com passos cuidadosos,
pensando que, cerca de novecentos anos antes, circulara por aqueles
mesmos espaços Abelardo, que ainda hoje é lembrado pelos
apaixonados que conhecem a sua história.
Trouxe as folhas para casa, cobri-as com
um spray de verniz e as retirei do tempo, prendendo-as em um
sanduíche de vidros. Isso já faz uns vinte anos. As folhas estão
como chegaram.
O amor feliz não vira literatura ou
arte. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, As pontes de Madison,
Love Story – o amor comovente é o amor trágico. Diz Octavio
Paz que “coisas e palavras sangram pela mesma ferida”. Mas amor
feliz não é ferida. Como poderiam, então, dele sangrar palavras? O
amor feliz não é para ser transformado em literatura. É para ser
desfrutado. O amor feliz não escreve, ele abraça. Se escreve alguma
coisa, são cartas de amor...
Se escrevo sobre Abelardo e Heloísa, é
porque a história deles é uma ferida na minha própria carne.
Heloísa tinha 17 anos. Abelardo, 38. Vinte e um anos os separavam. O
amor ignora os abismos do tempo.
Abelardo (1079-1142) foi apelidado de
“pássaro errante”. Intelectual fulgurante, figura central das
discussões filosóficas em Paris, motivo de invejas, ódios e
paixões. Assim Heloísa o descreve, numa carta para ele mesmo:
Que reis, que filósofos tiveram
renome igual ao teu? Que país, que cidade, que aldeia não se
mostrava impaciente em te ver? Aparecias em público? Todos se
precipitavam para te ver. Partias? Todos te procuravam seguir com os
olhos ávidos. Que esposa, que virgem não se terá abrasado por ti
em tua ausência e incendiado em tua presença? Possuías, sobretudo,
duas qualidades capazes de conquistar todas as mulheres: o encanto
das palavras e a beleza da voz. Não creio que outro filósofo as
tenha possuído em tão alto grau.
Heloísa, jovem dotada de raras
qualidades intelectuais, vivia em Paris, na casa do tio. Este,
desejoso de lhe dar a melhor educação, contratou Abelardo como
tutor intelectual da moça. Mas as lições de filosofia duraram
pouco. Logo os dois estavam perdidamente apaixonados. E Abelardo,
filósofo de rigor lógico incomparável, transformou-se em poeta.
Heloísa tomou conta do seu pensamento e corpo e, a partir de então,
segundo ele mesmo confessa, nele só se encontravam “versos de amor
e nada dos segredos da filosofia”.
O tio, ao descobrir o que acontecia em
sua casa, sentiu-se enganado e se enfureceu. Interrompeu as “lições”
e proibiu que eles se vissem de novo. Inutilmente. A distância não
apaga, ela acende o amor. E o próprio Abelardo comenta: “A
separação dos corpos levou ao máximo a união dos nossos corações
e, porque não era satisfeita, nossa paixão se inflamou cada vez
mais”.
Mas Heloísa ficou grávida. Abelardo
resolveu raptá-la e levá-la para um lugar distante. À noite,
retirou-a da casa do tio e a levou para a casa da irmã dele, em
Pallet, 400 quilômetros distante de Paris. Foi lá que nasceu o
filho do seu amor. Casaram-se secretamente no dia 30 de julho daquele
ano.
Mas, para o tio de Heloísa, o acontecido
exigia vingança. Planejou, então, a pior de todas as vinganças
possíveis. Contratou um bando de marginais, que invadiram a casa de
Abelardo e o castraram. Pensava o tio que, assim, colocaria fim
àquele amor. Inutilmente. Continuaram a se amar pelo resto da vida,
com o poder da memória e da saudade – até que a morte os unisse
eternamente. Amaram-se sem se tocar, o que confirma o dito por Milan
Kundera de que é preciso salvar o amor da tolice da sexualidade.
Abelardo morreu aos 63 anos, em 1142.
Heloísa, ao saber disso, exigiu para si a posse de “seu homem”.
Na verdade, era isso que Abelardo lhe havia pedido. “Quando eu
morrer”, escreveu a ela, “peço-te que procures transportar o meu
corpo para o cemitério da tua abadia...”. E Heloísa ordenou que,
uma vez morta, seu corpo fosse enterrado no túmulo de seu marido, o
que aconteceu vinte anos depois.
Conta-se que, quando Heloísa foi levada
para o túmulo e o caixão de Abelardo foi aberto, ele abriu os
braços e a abraçou. Dizem outros, ao contrário, que foi Heloísa
quem abriu os seus, para abraçá-lo. É possível.
Estão enterrados num túmulo de mármore
branco, no cemitério Père-Lachaise, em Paris. Sob a proteção de
um dossel rendilhado, também de mármore, eles se encontram em sua
forma definitiva, modelados pela memória, pela noite, pelo desejo.
Deitados um ao lado do outro, em vestes
mortuárias, sem se tocar, rostos voltados para os céus, mãos
cruzadas sobre o peito, sem desejo – assim um escultor os esculpiu,
obediente à forma como a tradição religiosa imobilizou os mortos.
Mas, se a escolha fosse deles, a escultura seria outra: O beijo, de
Rodin, um homem e uma mulher, corpos nus abraçados. E as palavras
gravadas seriam as de Drummond, em As sem-razões do amor:
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Talvez o amor de Heloísa tenha sido mais
puro e intenso. Abelardo conhecera o amor de muitas e o amor à
filosofia. Ela, ao contrário, conheceu apenas o amor por Abelardo.
Diz um de seus biógrafos: “Para Heloísa, não há senão dois
acontecimentos em sua vida: o dia em que soube que era amada por
Abelardo e o dia em que o perdeu. Tudo o mais desaparece a seus olhos
numa noite profunda”.
Ainda hoje, decorridos quase novecentos
anos, os namorados visitam aquele túmulo. Talvez para suplicar a
Deus que permaneçam abraçados eternamente, como em O beijo,
de Rodin. Talvez para pedir que lhes seja dada a felicidade de viver
um amor como aquele, mas sem ter de viver a sua dor. O amor feliz,
sem literatura, sem fama, sem que ninguém o conheça. Basta a
felicidade do amor feinho, como Adélia Prado o batizou
carinhosamente. Estou certo de que era isso que Abelardo e Heloísa
teriam desejado.
O túmulo deles está à sombra de uma
árvore. Apanhei algumas folhas e fiz com elas o que fiz com as
folhas vermelhas de hera. Agora estão dentro de um túmulo de vidro
no meu escritório. Toda vez que as vejo, eu me lembro da história
dos dois apaixonados.
A liturgia clássica de casamento termina
com a declaração “até que a morte os separe”. Para Abelardo e
Heloísa, teria de haver um fim diferente. Separados um do outro por
toda a vida, não era necessário que a morte viesse afastá-los. A
liturgia teria de ter um outro fim: “até que a morte os una para
todo o sempre”.
Assim foi. Assim será. Eternamente.
Rubem Alves, in Cantos do pássaro encantado
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