terça-feira, 3 de agosto de 2021

Até que a morte...

 

Túmulo de Abelardo e Heloísa em Paris


Era outono. O vento já havia tocado as árvores com seus dedos frios, colorindo as folhas de amarelo e vermelho. Ao lado direito, um muro alto de pedras que quase não se viam, cobertas que estavam por uma hera de folhas vermelho-escuras, em forma de coração. Colhi cinco folhas e as coloquei dentro de guardanapos de papel, para desidratá-las.
A importância daquelas folhas, para mim, não era estética – embora fossem bonitas, eram comuns. Eu as colhi por terem crescido naquele lugar, a abadia de Cluny. Caminhei em silêncio por seus corredores, pátios e jardins porque, para mim, havia alguma coisa de sagrado ali. Caminhava com passos cuidadosos, pensando que, cerca de novecentos anos antes, circulara por aqueles mesmos espaços Abelardo, que ainda hoje é lembrado pelos apaixonados que conhecem a sua história.
Trouxe as folhas para casa, cobri-as com um spray de verniz e as retirei do tempo, prendendo-as em um sanduíche de vidros. Isso já faz uns vinte anos. As folhas estão como chegaram.
O amor feliz não vira literatura ou arte. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, As pontes de Madison, Love Story – o amor comovente é o amor trágico. Diz Octavio Paz que “coisas e palavras sangram pela mesma ferida”. Mas amor feliz não é ferida. Como poderiam, então, dele sangrar palavras? O amor feliz não é para ser transformado em literatura. É para ser desfrutado. O amor feliz não escreve, ele abraça. Se escreve alguma coisa, são cartas de amor...
Se escrevo sobre Abelardo e Heloísa, é porque a história deles é uma ferida na minha própria carne. Heloísa tinha 17 anos. Abelardo, 38. Vinte e um anos os separavam. O amor ignora os abismos do tempo.
Abelardo (1079-1142) foi apelidado de “pássaro errante”. Intelectual fulgurante, figura central das discussões filosóficas em Paris, motivo de invejas, ódios e paixões. Assim Heloísa o descreve, numa carta para ele mesmo:

Que reis, que filósofos tiveram renome igual ao teu? Que país, que cidade, que aldeia não se mostrava impaciente em te ver? Aparecias em público? Todos se precipitavam para te ver. Partias? Todos te procuravam seguir com os olhos ávidos. Que esposa, que virgem não se terá abrasado por ti em tua ausência e incendiado em tua presença? Possuías, sobretudo, duas qualidades capazes de conquistar todas as mulheres: o encanto das palavras e a beleza da voz. Não creio que outro filósofo as tenha possuído em tão alto grau.

Heloísa, jovem dotada de raras qualidades intelectuais, vivia em Paris, na casa do tio. Este, desejoso de lhe dar a melhor educação, contratou Abelardo como tutor intelectual da moça. Mas as lições de filosofia duraram pouco. Logo os dois estavam perdidamente apaixonados. E Abelardo, filósofo de rigor lógico incomparável, transformou-se em poeta. Heloísa tomou conta do seu pensamento e corpo e, a partir de então, segundo ele mesmo confessa, nele só se encontravam “versos de amor e nada dos segredos da filosofia”.
O tio, ao descobrir o que acontecia em sua casa, sentiu-se enganado e se enfureceu. Interrompeu as “lições” e proibiu que eles se vissem de novo. Inutilmente. A distância não apaga, ela acende o amor. E o próprio Abelardo comenta: “A separação dos corpos levou ao máximo a união dos nossos corações e, porque não era satisfeita, nossa paixão se inflamou cada vez mais”.
Mas Heloísa ficou grávida. Abelardo resolveu raptá-la e levá-la para um lugar distante. À noite, retirou-a da casa do tio e a levou para a casa da irmã dele, em Pallet, 400 quilômetros distante de Paris. Foi lá que nasceu o filho do seu amor. Casaram-se secretamente no dia 30 de julho daquele ano.
Mas, para o tio de Heloísa, o acontecido exigia vingança. Planejou, então, a pior de todas as vinganças possíveis. Contratou um bando de marginais, que invadiram a casa de Abelardo e o castraram. Pensava o tio que, assim, colocaria fim àquele amor. Inutilmente. Continuaram a se amar pelo resto da vida, com o poder da memória e da saudade – até que a morte os unisse eternamente. Amaram-se sem se tocar, o que confirma o dito por Milan Kundera de que é preciso salvar o amor da tolice da sexualidade.
Abelardo morreu aos 63 anos, em 1142. Heloísa, ao saber disso, exigiu para si a posse de “seu homem”. Na verdade, era isso que Abelardo lhe havia pedido. “Quando eu morrer”, escreveu a ela, “peço-te que procures transportar o meu corpo para o cemitério da tua abadia...”. E Heloísa ordenou que, uma vez morta, seu corpo fosse enterrado no túmulo de seu marido, o que aconteceu vinte anos depois.
Conta-se que, quando Heloísa foi levada para o túmulo e o caixão de Abelardo foi aberto, ele abriu os braços e a abraçou. Dizem outros, ao contrário, que foi Heloísa quem abriu os seus, para abraçá-lo. É possível.
Estão enterrados num túmulo de mármore branco, no cemitério Père-Lachaise, em Paris. Sob a proteção de um dossel rendilhado, também de mármore, eles se encontram em sua forma definitiva, modelados pela memória, pela noite, pelo desejo.
Deitados um ao lado do outro, em vestes mortuárias, sem se tocar, rostos voltados para os céus, mãos cruzadas sobre o peito, sem desejo – assim um escultor os esculpiu, obediente à forma como a tradição religiosa imobilizou os mortos. Mas, se a escolha fosse deles, a escultura seria outra: O beijo, de Rodin, um homem e uma mulher, corpos nus abraçados. E as palavras gravadas seriam as de Drummond, em As sem-razões do amor:

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Talvez o amor de Heloísa tenha sido mais puro e intenso. Abelardo conhecera o amor de muitas e o amor à filosofia. Ela, ao contrário, conheceu apenas o amor por Abelardo. Diz um de seus biógrafos: “Para Heloísa, não há senão dois acontecimentos em sua vida: o dia em que soube que era amada por Abelardo e o dia em que o perdeu. Tudo o mais desaparece a seus olhos numa noite profunda”.
Ainda hoje, decorridos quase novecentos anos, os namorados visitam aquele túmulo. Talvez para suplicar a Deus que permaneçam abraçados eternamente, como em O beijo, de Rodin. Talvez para pedir que lhes seja dada a felicidade de viver um amor como aquele, mas sem ter de viver a sua dor. O amor feliz, sem literatura, sem fama, sem que ninguém o conheça. Basta a felicidade do amor feinho, como Adélia Prado o batizou carinhosamente. Estou certo de que era isso que Abelardo e Heloísa teriam desejado.
O túmulo deles está à sombra de uma árvore. Apanhei algumas folhas e fiz com elas o que fiz com as folhas vermelhas de hera. Agora estão dentro de um túmulo de vidro no meu escritório. Toda vez que as vejo, eu me lembro da história dos dois apaixonados.
A liturgia clássica de casamento termina com a declaração “até que a morte os separe”. Para Abelardo e Heloísa, teria de haver um fim diferente. Separados um do outro por toda a vida, não era necessário que a morte viesse afastá-los. A liturgia teria de ter um outro fim: “até que a morte os una para todo o sempre”.
Assim foi. Assim será. Eternamente.

Rubem Alves, in Cantos do pássaro encantado

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