A aliança entre o Estado e a ciência
data dos primórdios da civilização. Por milhares de anos, bem
antes do início do século XVII marcar o nascimento da ciência
moderna, artesãos desenvolveram ligas metálicas, arcos mais
precisos, catapultas, pólvora e muitas outras invenções a serviço
do Estado, tanto para defender quanto para atacar. A pedido do rei
Gelão II, o grande inventor e matemático grego Arquimedes desenhou
armas para proteger a cidade de Siracusa dos navios romanos. Relatos
históricos (talvez um pouco exagerados) contam que construiu
catapultas gigantescas e usou espelhos e lentes gigantes para
incendiar as naves invasoras. De qualquer forma, a aplicação do
conhecimento científico no desenvolvimento de armamentos é parte
essencial da história da humanidade.
Felizmente, essa não é, me parece, a
motivação principal que leva jovens a seguir uma carreira
científica. A maioria escolhe ser cientista para se engajar no
estudo da Natureza em todas as suas manifestações, vivas (nas
ciências biológicas) e não vivas (nas ciências físicas), ou para
desenvolver tecnologias que potencialmente possam melhorar a
qualidade de vida da humanidade: mais conforto e energia, mais
comida, mais saúde. Por outro lado, a maioria absoluta das áreas de
pesquisa necessitam de fomento, seja ele proveniente do governo ou da
iniciativa privada.
É aqui que nasce a aliança entre a
ciência e o Estado. A intensidade dessa aliança depende de
circunstâncias políticas. Tipicamente, em tempos de guerra ou
durante regimes autoritários, a aliança é fortalecida e o Estado
engaja cientistas para defender seus interesses estratégicos. Dentro
dessa realidade, as reações dos cientistas são variadas. Por
exemplo, enquanto os irmãos Wright não tiveram o menor escrúpulo
em vender seus aviões para o exército americano em 1909, o uso de
aviões como armas de guerra horrorizou nosso Santos Dumont, a ponto
de possivelmente ter contribuído para o seu suicídio em 1932.
Na Primeira Guerra Mundial, o impacto da
ciência foi essencial. Essa guerra é muitas vezes chamada de
“Guerra dos Químicos”, pelo uso de gases venenosos nas frentes
de batalha, com resultados devastadores para ambos os lados. Mais de
124 mil toneladas de gases venenosos foram usados, em violação da
Convenção de Haia de 1899. Na Alemanha, grandes empresas como a
Bayer, a Hoechst e a BASF uniram-se ao Instituto de Pesquisas Kaiser
Wilhelm, sob a direção do Prêmio Nobel de Química Fritz Haber,
para desenvolver bombas capazes de espalhar os gases nas trincheiras.
(Haber recebeu o prêmio em 1918, quando a guerra estava terminando.)
A contratação de empresas privadas pelo
Estado é típica nesses casos. Em geral, as guerras são ganhas por
aqueles que detêm as tecnologias mais avançadas. Quando necessário,
o Estado desenvolve complexos de pesquisa dedicados ao
desenvolvimento de novas tecnologias bélicas, muitas vezes
contratando times de cientistas para chefiar as pesquisas, como no
caso de Fritz Haber. A aliança entre o Estado e a ciência é vista
como essencial para proteger a população e a hegemonia estatal: o
cientista, patriota, vê-se encurralado, sabendo, ao mesmo tempo, que
seus conhecimentos podem defender seu país e comunidade e, também,
a devastação que podem causar.
Se a Primeira Guerra Mundial foi a
“guerra dos químicos”, a Segunda foi a dos físicos. Entre a
invenção do radar em 1935, alguns anos antes da guerra e, mais
dramaticamente, a bomba atômica em 1945, a aplicação de conceitos
novos da física no desenvolvimento de equipamentos de detecção e
armamentos de destruição teve um papel essencial na vitória dos
Aliados. Por outro lado, despertou, também, uma conscientização do
poder da ciência inédita na história.
Após o primeiro teste da bomba atômica
no deserto de Alamogordo, no Novo México, o físico e diretor do
Projeto Manhattan, J. Robert Oppenheimer, citou o Bhagavad Gita, a
escritura religiosa hindu, para expressar seus sentimentos: “Agora
sou a Morte, destruidora de mundos.” Para Oppenheimer e todos os
demais cientistas e militares presentes no teste, ficou claro que o
mundo jamais seria o mesmo. Pela primeira vez na história, o homem
tinha uma arma com poder de destruição de proporções globais.
Enquanto muitos cientistas eram veementemente contra o uso de armas
nucleares em qualquer conflito, outros não viam outra forma de deter
o inimigo.
O orgulho nacional misturado com o
patriotismo, a curiosidade científica e o medo de que os nazistas
pudessem, também, desenvolver a bomba atômica eram um combustível
poderoso. (Após a guerra, ficou claro que os nazistas estavam longe
de construir uma bomba atômica. Mas antes, durante o conflito, a
informação era inconsistente.)
Mesmo assim, continua sendo um mistério
como o grupo de cientistas que trabalhou no Projeto Manhattan, na
maioria, indivíduos de natureza pacífica, intelectualmente abertos,
e sempre dispostos a dividir o conhecimento entre si, colaborou na
construção de uma arma tão nefasta. Por outro lado, uma vez que a
arma foi construída, a decisão de usá-la não pertencia aos
cientistas que a criaram. Este é um ponto essencial na aliança
entre o Estado e a ciência: mesmo que, ocasionalmente, cientistas
possam trabalhar entusiasticamente no desenvolvimento de uma nova
arma, a decisão de como e onde usá-la vem do Poder Executivo,
presumivelmente com o apoio do Legislativo (ou não, em regimes
autoritários).
O sucesso da ciência norte-americana
durante a Segunda Guerra iniciou uma nova era no fomento da pesquisa
científica, tanto básica quanto aplicada. No pós-guerra, a corrida
armamentista disparou, aquecida pela Guerra Fria e pelo medo de um
ataque soviético. Na década de 1960, a corrida espacial pôs lenha
no fogo, acelerando ainda mais o fomento da pesquisa. Tanto nos EUA
quanto na União Soviética, a ciência básica era vista como
essencial na geração de ideias que, potencialmente, poderiam ser
usadas em tecnologias de defesa.
Em julho de 1945, Vannevar Bush, diretor
do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento Científico dos EUA,
declarou num relatório para o presidente Truman (iniciado sob o
governo do presidente Roosevelt), intitulado “Ciência: a fronteira
sem fim”: O espírito dos pioneiros ainda é vigoroso em nossa
nação. A ciência oferece um território inexplorado para o
pioneiro que detenha os instrumentos necessários para esse objetivo.
As recompensas dessa exploração para a nação e para o indivíduo
são enormes. O progresso científico é a chave essencial para a
segurança nacional, para a nossa saúde, para gerar novos empregos e
uma qualidade de vida mais elevada, para nosso progresso cultural.
A ciência é uma oportunidade para o
indivíduo e para a nação. Não pode progredir sozinha, precisando
ser apoiada pelo Estado e pela iniciativa privada. Obviamente, a
pesquisa industrial é essencial, e hoje é dominante, inclusive na
corrida espacial. O que é raramente discutido, mesmo que sempre
esteja implícito, é a moralidade das escolhas que são (ou não)
feitas por cientistas que trabalham nas diversas áreas de pesquisa.
Rotular a ciência como sendo moral ou imoral não faz sentido.
A ciência em si é amoral, uma coletânea
de fatos sobre o mundo natural obtidos pacientemente por cientistas,
profissionais que seguem uma metodologia de análise quantitativa de
dados e observações. Isso é tanto verdade para os cientistas que
estudam frentes de choque em detonações explosivas, como para os
cientistas, engenheiros e técnicos que desenham ou trabalham nas
linhas de montagem de bombas, ou para físicos de partículas que
buscam os componentes fundamentais da matéria. A questão do uso
moral da ciência emerge na relação entre os cientistas e os seus
patronos, sejam eles o governo ou o setor privado.
É verdade que ter uma arma não é a
mesma coisa do que usar a arma. Desde o bombardeio de Nagasaki pelos
EUA, nenhuma outra bomba atômica foi usada. A política de prevenção
de conflitos nucleares, ao menos até agora, está funcionando.
Porém, também é possível argumentar que ter uma arma é a
condição essencial para usá-la. Ter uma vasta coleção de armas
nucleares é uma estratégia de paz um tanto instável, assunto a que
voltaremos adiante. E este é o cerne da questão na aliança entre a
ciência e o Estado. A aliança é, por construção, instável.
A decisão do uso das armas, inclusive as
nucleares, está nas mãos do líder do país, que é, em última
instância, a pessoa responsável pelo seu uso. Não são os
cientistas que decidem quais armas são usadas, ou quando. Portanto,
o que dizer do cientista que trabalha nessa área? Não me parece que
há uma resposta simples. Existem várias profissões que podem
prejudicar ou ferir pessoas. Existem muitos modos de ferir o outro.
Se o fazem dentro da indústria bélica, é porque escolheram
fazê-lo, por uma ideologia de patriotismo, de orgulho nacionalista,
ou porque foi o emprego que conseguiram. Porém, a decisão moral de
como a ciência é usada está nas mãos daqueles que detêm o poder
de ação. Por isso, é essencial que o cidadão saiba escolher seus
líderes políticos. E que cientistas saibam refletir, criticamente,
sobre a natureza de seu trabalho.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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