Z. M. sentia que a vida lhe fugia por
entre os dedos. Na sua humildade esquecia que ela mesma era fonte de
vida e de criação. Então saía pouco, não aceitava convites. Não
era mulher de perceber quando um homem estava interessado nela a
menos que ele o dissesse – então se surpreendia e aceitava.
De tarde – era primavera, primeiro dia
de primavera – foi visitar uma amiga que a pôs em brios. Como
então ela, uma mulher feita, era tão humilde? como é que não
percebia que vários homens a queriam? como não percebia que devia,
dentro de sua própria dignidade, ter um caso de amor? Disse ainda
que a vira entrar numa sala onde todos eram conhecidos. E por acaso
nenhum dos presentes chegava a seus pés. E no entanto entrou tímida
como ausente, como uma corça de cabeça baixa. “Você precisa
andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque você é
diferente, cosmicamente diferente, então aceite que você não pode
ter a vida burguesa, e entre numa sala com a cabeça levantada.”
“Mas entrar sozinha numa sala cheia de gente?” “Exatamente.
Você não precisa de companhia para ir, você mesma é bastante.”
Lembrou-se que no fim da tarde havia uma
espécie de coquetel para os professores primários, em férias.
Lembrou-se da atitude nova que desejava, não combinou a ida com
nenhum professor ou professora – arriscar-se-ia toda só. Vestiu um
vestido mais ou menos novo, mas a coragem não vinha. Então – só
o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que
seu rosto parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma
alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era
vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que
ela não era. Mas na hora de sair de casa, fraquejou: não estaria
exigindo demais de si mesma? Toda vestida, com uma máscara de
pintura no rosto – ah persona, como não te usar e enfim
ser! –, sem coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão
conhecida e seu coração pedia para ela não ir. Parecia que previa
que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o
cigarro-de-coragem, levantou-se e foi.
Pareceu-lhe que as torturas de uma pessoa
tímida jamais foram completamente descritas. No táxi que rolava ela
morria um pouco.
E ei-la de repente diante de um salão
enorme com talvez muitas pessoas, mas pareciam poucas dentro do
descomunal espaço onde se processava como um ritual moderno o
coquetel.
Quanto tempo suportou de cabeça
falsamente erguida? A máscara a incomodava, ela sabia ainda por cima
que era mais bonita sem pintura. Mas sem pintura seria a nudez da
alma. E ela não podia se arriscar nem se dar esse luxo.
Falava sorrindo com um, falava sorrindo
com outro. Mas como em todos os coquetéis, nesse era impossível a
conversa e quando ela viu estava de novo sozinha.
Viu um homem que tinha sido seu amante. E
ela pensou: por mais amor que este homem tenha recebido, fui eu que
lhe dei toda a minha alma e todo o meu corpo. Os dois se olharam,
perscrutaram-se, ele com certeza espantado com a máscara de pintura.
Não soube o que fazer senão perguntar-lhe se ele era seu amigo, se
podia ser. Ele disse que sim, para sempre.
Até que sentiu que não suportava mais
manter a cabeça de pé. Mas como atravessar a enorme extensão até
a porta? Sozinha, como uma fugitiva? Então em meias palavras
confessou seu drama a uma das professoras e ela levou-a pela enorme
extensão até a porta.
E no escuro da noite primaveril ela era
uma mulher infeliz. Sim, era diferente. Mas sim, era tímida. Sim,
era supersensível. Sim, vira um amor passado. O escuro e o perfume
da primavera. O coração do mundo batia-lhe no peito. Sempre soubera
sentir o cheiro da natureza. Achou finalmente um táxi onde se sentou
quase em lágrimas de alívio, lembrando-se que em Paris lhe
acontecera o mesmo porém pior ainda. Foi para casa como uma foragida
do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em
casa estava agasalhante, ela se olhou ao espelho quando estava
lavando as mãos e viu a persona afivelada no seu rosto: a
persona tinha um sorriso parado de palhaço. Então lavou o
rosto e com alívio estava de novo de alma nua. Tomou então uma
pílula para dormir. Antes que chegasse o sono, ficou alerta e se
prometeu que nunca mais se arriscaria sem proteção. A pílula de
dormir começava a apaziguá-la. E a noite incomensurável dos sonhos
começou.
Clarice Lispector, in Todas as Crônicas
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